Livro OS SERTOES DO LESTE
Paulo Mercadante
Narra as origens de nossa região em um belo livro.
Como encontrei em outro lugar, postei aqui para todos que estiverem interessados em nossa História.
À minha mãe
Adélia de Freitas Mercadante
dedico este livro
"Terra socialmente formada no Império,
depois do grande surto setecentista,
com cafezais sem fim, lavouras ricas,
mas igrejas pobres, cidades monótonas,
sem a comovente beleza barroca das outras.
Terra sem poetas, sem lendas antigas,
sem mártires de velhas causas mortas."
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
Um Estadista da República
INTRODUÇÃO
OS DESBRAVADORES ARROJARAM-SE aos perigos das Áreas Proibidas, a partir dos contrafortes da Mantiqueira. Conheceram a selva inóspita, cravaram os mourões nos vales e encostas. Nada impediu o avanço rio acima: nem a correnteza, nem o sumidouro. A região pouco a pouco é devassada, a conquista se faz pedaço por pedaço.
Que era a Mata de então? Floresta violada apenas pelos rios. Indígena e mistério. Nela cresceriam fogos e fazendas. E na paisagem sem rota foram por fim sepultados os pioneiros. Gigantes fundiam-se à terra, deitando raízes nos rincões e nos currais.
Longe estava a Corte, e o anseio de liberalismo revela-se nas Gerais. Em Santa Luzia, na aldeia banhada pelo rio das Velhas, extinguia-se o sonho dos chimangos. Levas então desceriam. Rumava para o Leste a gente sofrida da derrota política. Carregava, na fuga de represálias, haveres e família.
Por todo o canto brotaram povoados. A casaria, como serpente, acompanhava as águas ao acaso. Na fazenda, próximo à sede, erguera-se a capela. Sem o ouro das Minas, no rústico da selva, é rancho improvisado, ara sem atavio, apenas a mesa com a parafernália jacente. Apagava-se, na arquitetura e nos interiores, o barroco das mãos crispadas e faces contorcidas. Tudo é tosco e modesto.
Transpunha-se a metade do Oitocentos. Grupos começaram a chegar do Paraíba. Filhos e netos de mineiros regressavam à província paterna. Os cafezais haviam exaustado o solo fluminense e, tragando terras, avançavam a dentro.
Do encontro de sedentários e adventícios nasceram as cidades da Mata. Minas de áurea terra, de sentimento de liberdade com litoral, em seus resíduos de sofisticação e decadência. Dois rios: o das Velhas, trazendo a cultura do século XVIII, ideais de Tiradentes e Ottoni; o Paraíba, negro e café. 0 espirito dominador da Zona da Mata, teimosia ou reacionarismo, deflui dessa união de barroco com decadência baronal.
No fim do Oitocentos, a região alcança a maioridade. Trem de ferro diário, trazendo noticias e bens de consumo. 0 café distribuía-se por todos os cantos, espargia-se nos vales, grimpava pelas encostas. As ruas, próximas à estação da Leopoldina Railway, cheias de armazéns, a receber catadeiras em suas máquinas de beneficiamento. 0 dinheiro rolava; fizeram-se fortunas, as cidades cresceram.
Na política, os doutores subiram, hábeis, conciliantes, respondendo com astúcia às manobras do governo. A lavoura remanescia lastro, tradição e status do patriciado.
Na década de vinte há restos comuns em todas as comunidades, traços soltos da época pretérita. 0 Jardim, de árvores fortes, as ruas recém-calçadas, revelando o desassossego das tropas de animais, a cruzar as cidades com sacos de aniagem. Alguma vez, um rebanho, a manada revolta, invadindo o centro com estrépito e tumulto. Cavaleiros pelo dia, apeando do cavalo, de botas e espora, ou matutos tranqüilos trotando sem garbo. Os carros de boi em profusão, descarregando os macaqueiros chegados dos distritos para as compras no varejo.
Havia no tempo sobras de lutas e ressentimentos. Histórias e fatos misturando-se. Crimes e júris. As pretas velhas desfilavam casos com se fossem lendas.
Maio dir-se-ia mês de deslumbramento. As festas religiosas ganhavam um esplendor à altura das tradições. 0 hino à Maria, à sua pureza, ligava-se aos encantos das meninas. Para cada noite, as mãos de uma criança coroavam Nossa Senhora. 0 séquito caminhava em direção à igreja com luzes multicores. 0 altar armava-se num dos nichos, e após a reza, o cântico. Maria, a ser coroada, prendia-se ao centro de um céu de estrelas douradas. Meia lua de prata cortava a abóbada entre as cores vermelhas. Um pouco de barroco das Congonhas, renascido com graça nos Sertões do Leste.
Maio assistia alegremente às tradições. Nas festas religiosas, as barracas armavam-se com jogos de prendas Ao redor do Jardim, em allegro com fuoco, o espetáculo das congadas incorporava à paisagem da fé a presença do negro.
Mas na atmosfera de campanário a luta política endurecia os corações. Ressentimentos e olhares sólidos. O chefe do executivo descia pela rua principal. Vingavam-se, os adversários com sarcasmo, sonhando com revanche 0 foguetório explodia, saudando noticias e atenazando os inimigos. A revolução distante, de tempos a tempos, virando os poderes. Da capital à província a trajetória fazia-se por telegramas cifrados. De um ponto a outro, cercas de arame farpado dividiam as esferas. 0 poder separava. os homens adultos, tornava-os álgidos e duros.
Os rios da Mata atravessam a paisagem e o tempo. Desde as origens, cortam silenciosos as aldeias e cidades. rumo do mar. Seguem para o Doce ou Paraíba. Funclal Garcia pintou-os em épocas distanciadas, límpidos rolando na solidão dos descampados e turvos, mais tarde, quando a erosão lhes tingiu as águas. Temperamento agreste, sensibilidade sertaneja, traçou nas telas as veredas com gente quase afogada pela vegetação. Os ranchos humildes desbotam-se diante da ênfase com que carrega ele as tintas no traço do latifúndio.
Por fim, quase às vésperas do Natal de 1929, ruía a graciosa silhueta do golden age. Fios invisíveis engolindo as distancias estenderam-se implacáveis. As pastagens começaram a invasão.
Teve a Zona da Mata, na hist6ria, curta vida região próspera. A erosão corroeu o solo por século e meio, desnudou as fraldas dos morros, gretou as ribanceiras. A cultura do café exigia o sacrifício. 0 capoeirão foi derrubado no cabeço da serra, onde devia ter permanecido para guardar a umidade e refrescar as terras. As queimadas, entretanto, faziam parte daquela cupidez de sôfregos aventureiros. De pouco valeram as advertências de Ribeirolles, há mais de cem anos, antevendo a decadência da província fluminense, quando ficassem desolados os seus morros. Em meio à invasão dos cazais, abundou no mesmo juízo o sacerdote mineiro Caetano da Fonseca.
Derruídas as capoeiras, cairia a fertilidade dos declives inferiores.. E a pena de Preston James exara a síntese do drama: "0 homem, em sua ação modificadora do meio ambiente, atua às vezes com inteligência, mas, na maioria dos casos, de maneira cega, sem qualquer premeditação, apenas satisfazendo os seus interesses imediatos."
E mal a Igreja se reformou, mal se pôs a lâmpada nas casas e nas ruas, investiu o latifúndio para o norte, deixando a desesperança. Assim findou o ciclo do café com povoados esparsos ao redor de cidades.
A Mata vale, porém, a pena de estudá-la quem a conheceu no afogo do crescimento, na esperança das suas manchas verdes. Hoje, quem a olha, de passagem pela rodovia, repara indiferente nos seus costumes e aspectos. Importa pouco o desmazelo da gente nas estradas, as crianças às portas dos casebres, o solitário caiçara. Cresce o plaino na perspectiva da sobretarde, com o agreste do rio de águas barrentas.
A Mata ora se transforma. A estrada de asfalto, com seus postos de gasolina, motéis e tráfego de caminhões, transfigura a paisagem provinciana. 0 radio-de- pilha modifica a linguagem. A região austera, pura e dominadora, em breve morrera. Entretanto, em sua metamorfose, ela não se extingue sem deixar os traços na fisionomia cultural da província e do Pais.
Este livro procura senti-la, traçar-Ihe o perfil, rabiscar-1he o contorno. Aspectos e raízes locais, lendas e horizontes, motivos e temperamentos da gente, fusão de dois séculos são aqui abordados.
Um mérito, pois, teria o esforço do autor, se despertasse na gente da Mata o interesse por seu passado e sua historia, de forma que não se perdesse irremediavelmente a valiosa cultura dos Sertões do Leste.
I
ÁREAS PROIBIDAS
À PROCURA DO OURO e pedras preciosas, seguiram os bandeirantes, desde os primórdios da hist6ria colonial, rumo ao interior. Da baia da Guanabara teria saído, em abril de 1531, a primeira expedição a tocar a Mata das Minas Gerais. Pandia Calógeras1 tentou reconstituir-1he o roteiro, e Derby admitiu a possibilidade da entrada. Eram quatro portugueses a explorar o sertão da costa do Rio de Janeiro. Conta-nos Pero Lopes de Sousa, em seu Diário, que eles, durante sessenta dias, andaram cento e quinze léguas pela terra, sessenta e cinco delas por montanhas e cinqüenta por um campo muito grande. Basilio de Magalhães duvidava de que apenas quatro homens pudessem aventurar-se a tão profundo embrenhamento. Impossível, porém, nunca seria que, transposta a serra dos órgãos, houvessem os desbravadores vadeado o Paraíba, pisando a terra mineira. 1
De pontos diferentes outros buscaram ainda as cabeceiras do São Francisco, partindo ora do norte, ora do sul.
Estimulados por cartas régias, a prometerem honrarias e prêmios aos descobridores de riquezas, acompanhavam os cursos dos rios maiores e de seus afluentes. Contornaram, nas investidas, os Sertões do Leste, atual Mata Mineira e neles penetraram.
Em 1554, Brás Espinhosa partia ao rebusco de ouro e prata. Residente em Porto Seguro, substituía no comando da expedição a Filipe de Guilheme, que se furtara à incumbência, com alegar idade e moléstia. 0 Padre Manoel da Nóbrega seria também rendido por outro sacerdote, João de Aspilcueta de Navarro.2 "
Quando do aprestamento da bandeira, em 1553, já Tome de Sousa fora trocado por Duarte da Costa no Governo-Geral. Brás Espinhosa, de quem Mem de Sá dizia ser homem de bem, de verdade e de bons espíritos, intentou a descoberta das minas. Durante meses caminhou as matas e campos, tocando a nascente do Jequitinhonha. Margeou-a e das cercanias de Diamantina atingiu o São Francisco, prosseguindo por um de seus tributários da margem direita. Talvez pelo rio Pardo retornasse em 1555. Andara nessa marcha próximo à Zona da Mata, e a experiência, enriquecida por buscas seguintes de Vasco Rodrigues Caldas, procurando entranhar-se pelo rio Paraguaçu, disporia a penetração pela bacia do Doce.3
A entrada de Martim de Carvalho, realizada em 1567 ou 1568, esquadrinhou, durante oito meses, o curso do Jequitinhonha, vagueando ainda por trato onde se ligam as bacias do precitado rio, do Doce, do Mucuri e do São Mateus. Dela nos fala Pedro de Magalhães de Gândavo.4
Ao fim, teria Sebastião Fernandes Tourinho atingido os Sertões do Leste. Nas andanças perdeu-se em marchas e contramarchas. O roteiro está descrito por Gabriel Soares de Sousa.5 Conta-vos o autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, que Tourinho, morador em Porto Seguro, com certos companheiros entrou pelo sertão, perambulando alguns meses à ventura, sem saber por onde, e meteu-se tanto pela terra a dentro que se achou em direito do Rio de Janeiro. Assim o perceberam pela altura do Sol, que Tourinho muito bem sabia tomar e por conhecerem a Serra dos Órgãos.
Gabriel Soares refere-se noutro lanço à mesma expedição, ao descrever o curso do Doce. Este rio, comenta o historiador, vem de muito longe e corre para o mar quase leste-oeste, pelo qual fez Tourinho uma entrada, navegando por diante até onde o ajudou a maré. Transpondo um braço acima, chamado Mandi, desembarcou, caminhou por terra obra de vinte léguas e foi dar com uma lagoa, da qual nasce um rio que se mete no Doce. E serpeando esta gente ao longo dele, andaram quarenta dias com o rosto a oeste.6
Orville A. Derby admitiu duas expedições de Tourinho. Na primeira, procedente do Cricaré, alcançou-se Juparanã e o trecho do Doce entre a lagoa e o mar. Na segunda, explorou-se o rio, seu afluente Suaçuí e a região do Serro. As pedras verdes encontradas poderiam ser do distrito diamantino, onde há minerais confundiveis com turquesas. Pode-se também interpretar a aventura como tendo Tourinho subido pelo Urupuca, descido pelo Itamarandiba até encontrar o Araçuaí. Derby não cria em explorações ao sul do Doce. Se houvera, talvez, uma entrada pelo rio Manhuaçu.7
Com analisar o itinerário do lusíada, Capistrano de Abreu, ressalvando a escassez de dados para a determinação dos pontos descritos na rota, supõe que duas tenham sido as empresas. Partiu a primeira da capitania de Porto Seguro, na diretriz de Espinhosa e Carvalho. Tomaria o Jequitinhonha, dele se apartando nas zonas em que as cachoeiras amiudadas dificultavam a navegação. Teria dai procurado o São Francisco, cuja bacia vagueou até alcançar algum afluente do Paraíba nascido na Mantiqueira, que o levasse a avistar a serra dos Órgãos.8 Seria a entrada havida por primeira, a mais ocidental, empreendida por quem não adquirira a experiência do sertão ou não entendera as explanações pouco precisas de seus guias.
Quanto à segunda, navegou o Doce ate as suas margens elevadas, onde ainda as cachoeiras não lhe obstruem o leito. Entrou, em seguida, no Guandu (Mandi de Gabriel Soares de Sousa), desembarcando dele e seguindo por terra umas vinte léguas em rumo OSO, até uma lagoa onde sai um rio em rumo leste, perlongado por setenta léguas, durante quarenta dias, em rumo de oeste, novamente ao Doce.
A região teria sido pervagada pelos bandeirantes de Tourinho. Encontrando as nascentes do Manhuaçu, numa lagoa, desceram-no por mais de trinta léguas, tomando o oeste até alcançar o Doce. A trajetória para chegar às cercanias do Araguai, onde encontrou Tourinho as esmeraldas, teria cortado o norte da Zona da Mata.
As referencias de Gabriel Soares de Sousa a Tourinho parecem ser a causa de atribuem-se-lhe as duas expedições. Entretanto, o segundo relato seja, talvez, desenvolvimento do primeiro. Inadmissível que em alguns meses pudesse o bandeirante, subindo o São Francisco ou o Doce, alcançar as imediações do Paraíba. A fim de avistar a serra dos Órgãos, teria de tomar qualquer outro curso e retornar pelos mesmos caminhos. A referencia de Gabriel Soares de Sousa as andanças à ventura diz respeito, possivelmente, ao trajeto do Guandu ao Manhuaçu. Antes de descer em direção ao Doce, a partir do ultimo rio, é provável que Tourinho se impressionasse com a serra de Caparaó, vista do oeste, que certa semelhança tem com a serra dos Órgãos.9
Vinte anos após têm inicio as entradas do ciclo espírito-santense, orientando-se pelas rotas de Tourinho e Adorno. Mas as penetrações parece não buscarem as margens direitas do rio Doce e sempre tomarem seus afluentes esquerdos. Em 1693, cem anos depois, outra aventura dirige-se de Taubaté à Mata Oriental das Minas. Rodeado de cinqüenta homens, seguiu Antônio Rodrigues Arzão em procura de Itacolomi. De Itaverava marchou ate a serra do Guarapiranga, agora chamada do Sanches. De lá divisou as grimpas de Arrepiados. Descendo em sua direção, fronteou com o rio Piranga, onde vagavam puris, que lhe deram noticias do rio Casca, originário da cordilheira cobiçada. Mal guiado, passou pelo atual Visconde do Rio Branco, antigo Presídio, indo bater na serra do Granadeiro ou Brigadeiro, que o sertanista tomou, a olho, pela Itacolomi. Chegando ao Casca, estava a comitiva quase destruída por males e combates. Nas cabeceiras do rio, tirou oitavas de ouro. Os puris dele se aproximaram, interessados em proteção contra os botocudos. Atacado de febre intermitente, carregado numa rede, Arzão arrepiou carreira pela margem do Xopotó em direitura ao Espirito Santo.
As indicações de sua jornada legou-as ao concunhado Bartolomeu Bueno de Siqueira, que, seguido pelos companheiros Miguel e Antônio de Almeida, retomou a trilha em princípios de 1694. Alcançou Itaverava, novamente encontrando indícios de ouro. Na mesma época, partia de Taubate o Coronel Salvador Fernandes Furtado, acompanhado pelo Capitão Manuel Garcia Velho. Dirigiram-se para o Doce, a chamada "Casa da Casca". à procura de índios. Tais investidas de apresamento e pesquisa de riquezas facilitariam a futura penetração nos Sertões do Leste.10
Perdeu-se a crônica de inúmeras arremetidas rumo ao Paraíba. Malogradas quase sempre, ficaram sem o merecido registro na Historia. Findo o ciclo do descimento do gentio, caracterizado pelo cunho predatório, sobreveio o bandeirismo pesquisador. Aquelas primeiras incursões, rápidas em suas passagens, brutais e despovoadoras, não haviam deixado núcleos de povoamento.
Já a bandeira de Fernão Dias Pais assumiria um papel de empresa permanente, no dizer de Afonso de Taunay. Em sua rota, fundava povoados, plantando roças, edificando pousadas e deitando raízes de colonização. Tangenciando o curso do Paraíba, invadiu o território mineiro pela garganta do Embaú. A bandeira, em seu pioneirismo, levaria a descoberta do ouro.
Dela também nasceria o caminno das Minas de Cataguá e do rio das Velhas.11 Ao trajeto refere-se Antonil, nos princípios do século XVIII. Marchando de sol a sol, pelo mais áspero dos picadões, conseguia-se alcançar as Minas Gerais em menos de trinta dias. Do Rio de Janeiro fazia-se então a derrota, por via marítima, até Parati.12 Depois, por uma vereda, chegava-se no vale do Alto Paraíba. Assim o descreveria Andreoni: "De Parati a Taubaté. De Taubaté a Pindamonhangaba. De Pindarnonhangaba a Guaratinguetá. De Guaratinguetá às roças de Garcia Rodrigues. Dessas roças ao Ribeirão, com oito dias mais de sol a sol, chegava-se ao rio das Velhas."13
Porém a Mata não tinha qualquer vinculo com o Caminho Velho. Receberia, no século seguinte, os sesmeiros das minas decadentes, mas graças a outro roteiro.
Assim, em fins do século XVIII, Garcia Rodrigues Pais, filho de Fernãoo Dias, dispõe-se a abrir a estrada que encurtasse a viagem da Capital do Sul às Regiões das Minas. A oferta foi aceita pelo Governador Artur de Sá. No Caminho Velho estavam as suas roças – nas cabeceiras do rio Paraopeba – onde o picadão começou a ser aberto em 1688.
Venceu a Mantiqueira, encontrou o Paraibuna, tornejou-o até a sua barra no Paraíba, e pela serra dos Órgãos alcançou o Rio de Janeiro, passando pelo Registro do Paraibuna, Simão Pereira, Matias Barbosa, Sá Fortes, Juiz de Fora, Antônio Moreira, Engenho, Pedro Alves. Partindo, assim, da Borda do Campo, Barbacena atual, onde se reuniam as veredas dos rios das Velhas, das Mortes e Doce, o caminho passaria próximo às Áreas Proibidas.14
Em 1700 já representava a picada o desenvolvimento de vereda indígena, porem de difícil passagem para cavalgaduras. Seria, no século XVIII, o rumo do ouro buscando o porto e da mesma forma a rota dos negros e dos produtos manufaturados.15 Mais tarde, uma variante, denominada "por terra", dispensando o trajeto da baia da Guanabara até o Porto da Estrela, passaria por Iguaçu, onde encontra a serra, unindo-se no alto dela ao Caminho Novo, no local hoje chamado Encruzilhada. Outra variante, aberta nos primeiros anos do século passado, destaca-se da estrada por terra, em Pau Grande, e se dirige mais para o oeste, alcançando o território mineiro por Valença e Rio Preto. Estudando velhos caminhos fluminenses, esclarece Basílio de Magalhães que em 1819 a 1820 a Junta do Comercio do Rio de Janeiro mandou construir uma estrada a partir do Caminho Novo, em Iguaçu, e, em vez de atravessar a serra da Viuva, passou por outra parte, então denominada serra da Estrada Nova. Seguia-se dai para Vassouras, onde, subindo a esquerda ao lugar chamado Desengano e à direita e ao ponto conhecido por Comércio, ambos às margens do Paraíba, ia encontrar as vias comuns já existentes para Valença, Rio Preto e para o vale do Paraibuna. Tal variante é simbólica, diz Caio Prado Junior, da transformação operada em Minas, que de mineradora se tornava agrícola e pastoril.16
A Mata era então desconhecida. Vista do litoral, pareciam-lhe impenetráveis os sertões.
Na verdade, após a fundação do Rio de Janeiro, seguida de seu desenvolvimento, os índios começaram a afastar-se, sobretudo os numerosos e aguerridos tamoios. A colonização, desimpedidas as áreas de perigo, marchou com relativa rapidez até o Baixo Paraíba. Ai estancava o avanço.
No outro lado do rio, estavam os puris. Desde a confluência com o Paraibuna até quase a foz do Pomba, tornava-se ele o limite daquele avanço de civilização. A descoberta do ouro nos sertões do Centro dar-se-ia nos finais do século XVII, mas o devassamento e conseqüente povoamento não provocaram a profundidade para os vales dos afluentes esquerdos do Paraíba. Em demanda das minas, os emigrantes, partissem de São Paulo ou do Rio de Janeiro, tomavam a estrada de Matias Barbosa, de onde caminhavam em direção a atual cidade de Baependi. De tal circunstancia resultaria conservar-se convizinha ao litoral fluminense, durante um século e meio, uma floresta virgem habitada apenas por índios e animais.
A tira de selva, muito estreita nas imediações de Mar de Espanha, ia sempre alargando-se para o norte, até juntar-se à imensa floresta capixaba. Matas impenetráveis a estender-se por vales e montanhas, cobrindo os flancos e cumes das serras e formando uma barreira natural ao povoamento dos Sertões do Leste.
Apesar da proximidade da Costa, a ocupação não se fizera. O ouro lá não existia, ou pelo menos nunca aflorou nas bacias dos seus rios. Então, em vez de a corrente imigratória17 seguir a direita ao encontro do Paraíba, espalhou-se pelo norte, pelo sul, e desprezou a parte rica de florestas denominada Áreas Proibidas.
Acresce a isto o concorrer-se outro fator à conservação da barreira. A administração vedava o povoamento, por política fiscal, a fim de proteger o erário. Procurava-se manter a ligação da capitania ao Rio de Janeiro apenas por uma rota, com o fito de resguardar a Coroa do descaminho e contrabando. Este o cuidado principal, sustenta Caio Prado Júnior, motivo por que tão pouco progredira a ocupação da Mata, nome que se deu a zona em oposição ao resto da capitania onde faltava a densa cobertura florestal característica.18
Havia consciência do papel protetor daquelas florestas contra a ação dos sonegadores, haja vista a referencia que o Governador Luis da Cunha Meneses fazia a tais sítios: "Sertão para a parte de Leste, denominado Áreas Proibidas, na hipótese de servirem os ditos sertões de uma barreira natural a esta capitania para segurança de sua fraude..." Constante das medidas legais contra os descaminhos figurava o embrenhamento por picada, caminhos ocultos ou pouco freqüentados.19
A Zona da Mata seria, destarte, resguardada por vicissitudes do ciclo minerador.
Na segunda metade do século XVIII, acentua-se a decadência das Minas Gerais. Sobre o assunto discorreu Oliveira Martins em pagina significativa. Arruinara-se a província e os habitantes atônitos diante do irremediável. Mantinham-se, a principio, indecisos, sem se convencerem da queda de jazigos cada vez menos produtivos.
Em conseqüência, os povoados e cidades paralisavam-se. "Vila Rica atravessava em 1804 uma fase de estagnação. As lavras exaustas haviam reduzido grande parte da população a um estado muito próximo da miséria. Da famosa Idade do Ouro restavam, praticamente, os vestígios materiais nos morros esburacados e nos córregos sinuosos onde renitentes faiscadores teimavam em buscar recursos para sobrevivência. Dava-lhe certo alento a circunstancia de ser a capital administrativa da Capitania, o que implicava a presença obrigatória de funcionários civis e militares com seu séquito de familiares e dependentes."20
Após o delírio da exploração aurífera, nada podia comprazer, e mesquinha afirmava-se aos velhos mineradores a atividade agrícola, A paisagem já revelava a perplexidade. O desânimo alcançara o campo escasso de pastagens e casas em ruínas. O minerador alimentava a crença de veio novo, da saudosa era de riqueza. Seriam precisos, porem, muitos anos para convencer-se de que o metal acabara, de que o remédio era o retorno à agricultura.
José João Teixeira Coelho, o mais lúcido dos estudiosos da decadência dos veeiros, indicou as causas ao Governo da Capitania. A análise do Desembargador referia-se à pobreza dos mineiros, à escassez de escravos, ao regime fiscal e de monopólio, ao mau método de minerar e a outras circunstancias.21 Eschwege reduziu-as à franquia ilimitada das minas e à ausência de leis montanísticas adequadas. Os mineiros só aproveitavam o que podiam separar de um modo imperfeito. Metade do ouro perdia-se na extração e na própria casa de fundir.22
Em fins do século XVIII quase se extinguiram os veeiros. De dezoito mil arrobas no período que medeia entre 1752 e 1787, desceu o produto para três mil e quinhentas nos primeiros vinte anos do século XIX. A lavra passara a absorver o resultado líquido da lavoura. Um velho depoimento registra a que se reduzira uma granja de média importância. "A casa era uma barraca miserável, com muros de taipa de barro, sem vidraça, roída pelo tempo e mal defendida contra as chuvas. O chão era a terra úmida e negra., sem ladrilhos nem sobrado, saturada de imundícies e endurecida pelo perpassar dos moradores, homens e cevados, que viviam numa promiscuidade repugnante. Por camas, enxergas duras para os amos, um couro ou uma esteira sobre o chão para os servos. A ninhada das crianças alegrava-se seminua, esfarrapada e descalça, as mulheres enfezadas e pobremente vestidas, e o chefe da casa, indolentemente embrulhado na capa, com os socos nos pés, vigiava o trabalho dos negros, lavando o cascalhinho com a sempre mantida esperança da descoberta de um deposito abundante de ouro."
As dividas cresciam. O metal cada vez mais reduzido. E vinte anos foram necessários para que se decidisse o mineiro abandonar a exploração das minas estéreis e entregar-se à lavoura.
Desenganada de ouro, diz Capistrano de Abreu, buscou a população outros meios de subsistência: criação de gado, agricultura de cereais, plantação de cana, de fumo etc. Em Minas Novas, até onde havia avançado o esforço aurífero, a cultura de algodão o substituía. Disto resultara, na terceira metade do século XVIII, um crescimento demográfico a conservar o nível do desenvolvimento anterior e facilitar mais tarde a penetração à Zona da Mata pelo vale do Doce.23
Saint-Hilaire traçou, em linhas gerais, o quadro inicial da maior parte das vilas mineiras. Seus primeiros povoadores foram atraídos pelo ouro que se extraía antigamente, em abundância, do leito do rio, e vêem-se, ainda hoje, sobre as margens, alguns montes de cascalho, resíduos das lavagens, mas o ouro se esgotou, os braços faltaram e os habitantes terminaram por renunciar definitivamente ao trabalho das lavagens. Vivem agora do produto das suas terras.24
Mas o deslocamento dos geralistas processa-se rumo ao território fluminense. Contornando as Áreas Proibidas, chegava aquela gente ao litoral, cujo desenvolvimento agrícola se intensifica. Celebre ficaria no planalto de Minas a expressão – foi para a Mata do Rio, ainda há um século empregada. O surto cafeeiro acelerava o povoamento compacto, dinâmico, contínuo, podendo ser classificado como expansão do tipo "mancha de óleo", idêntico ao das fazendas de gado e somente com estas contrastando do ponto-de-vista da dispersão, já, que se apresenta mais concentrado.25 Penetrando, o café ocupou extensa área propícia à sua floração.
Toda a vasta zona dos municípios de Resende, Barra Mansa, Barra do Pirai, Vassouras, Valença, Paraíba do Sul, Carmo, Pádua, Itaocara, Monte Verde, São Fidélis, cobriu-se de mineiros que, nos finais do século XVIII e começo do século XIX, abandonaram a mineração. Em 1840, Francisco Leite Ribeiro relatava a Gardner: "Os apelidos Monteiro de Barros, Teixeira Leite, Bastos, Pita de Castro, Barbosa de Castro, Vieira de Resende, Dutra, Corte Real, Moreira de Faria, Junqueira, Campelo, Lobato e tantos outros que ainda hoje figuram entre os fazendeiros dessa região, indicam a descendência de famílias mineiras da época mineradora."
Honório Silvestre descreve-nos o movimento demográfico, chamando a atenção para a circunstância de que o café não prendeu os montanheses no territ6rio fluminense. Este os levariam às Florestas da Mata, campo escolhido para o desdobramento de energias novas.
II
A POPULAÇÃO GENTÍLICA
REPORTAM-SE OS PRIMEIROS cronistas aos índios goitacás, habitantes das planícies ao sul do Paraíba. Na classificação de von den Stein, formam um grupo étnico autônomo, à maneira dos tupis e dos jês. Descreveram-nos von Martius e Ehrenreich, juntamente com os puris, coroados e coropós, como de origens afins. A atual tendência é localizá-los no grupo jê. Acordes neste juízo Rivet, Jorge Bartolaso Stella e Júlio Trajano de Moura, que classificam os coroados, puris e goitacás como grupos em que se dividem os jês.
Léry situava-os no litoral, entre os rios Macaé e Paraiba, considerando Metraux que Maq-hé seria um curso de água que se lançava proximo a Macaé. Coincide a informação com a do Padre Anchieta, que os descrevia como sorte de gente da mais feroz existente por toda a Costa.
A aceitarmos os goitacás como jês, teriam marchado, como os tapuias dos primeiros cronistas, para leste, do oeste, isto é, das proximidades do leito do São Francisco. Do trato costeiro, onde se tinham fixado, foram expulsos pelos tupis-guaranis. Anteriormente, acaso em período remoto, teria havido secessão na comunidade tribal, haja vista a diferença de linguagem observada por Karl von den Stein. As vicissitudes, e ainda as lutas intestinas, acabariam criando diferenças de caracteres físicos, o que talvez possa explicar a situaçao dos puris.
Posto se assemelhem fisicamente coropós ou cropós, coroados ou croatos e goitacás, já os puris, de modo geral, eram entroncados, baixotes e, não raro, musculosos.
Maximiliano descreveu-os de cabeça grande, rosto largo, maçãs quase sempre salientes. Tal disparidade de caracteres físicos não elimina a possibilidade de origens comuns. É quase certo que todos faziam parte das antigas populações que ocupavam a costa brasileira. Expulsos pelos portugueses, por 1630, dos campos abeirados da foz do Paraíba, internaram-se dispartidos nas florestas do Estado do Rio.
Temendo, em seguida, os tamoios dispersos., as tribos goitacás abandonaram os sítios e empreenderam a marcha de embrenhamento, servindo-se dos afluentes do Paraíba do Sul. Pelo Paraibuna, pelo Pomba e respectivos subafluentes, a partir dos primeiros anos do século XVIII ou dos últimos do século precedente, tais tribos retirantes alcançariam Sapé e as fraldas da Mantiqueira. Bem próximo ao Caminho Novo, de onde sairiam depois os sertanistas e faiscadores, abeirariam os Sertões do Leste. Pelo Muriaé atingiram o Carangola, espalhando-se por planícies e serras.
Diogo de Vasconcelos exara o roteiro indígena em direção ao Pomba, Miragaia, Serra da Onça e Piranga, a partir do vale inferior do Paraíba. Os relatos do Padre Manuel de Jesus Maria e MarIière coincidem com tal hipótese.
Salvar-se-iam por mais de dois séculos aquelas tribos procedentes da orla marítima. Escondiam-se nos sítios, onde a perseguição do colonizador encontrava as barreiras naturais da floresta. Em outro meio, distantes.dos descampados, tiveram, porém, de se adaptar. Novos costumes e meio de vida adequados às condições do Interior.
Na direção do Oeste seguem os selvagens. No ribeirao da Meia-Pataca, cujas cabeceiras têm a designação de córrego da Neblina, próximo à atual cidade de Cataguases, encontrariam os sertanistas, no seculo XVIII, os coroados. Subindo pelo rio Pomba, estavam os aldeamentos às margens direitas do Alto Rio Doce, onde já se achavam em som de guerra os famigerados botocudos.
Nas cabeceiras do córrego Caeté, nome que tem o Xopotó na serra de São Geraldo, indígenas caetés viviam mansamente no meado do século XVIII. Aliás, neste vale, onde se acha o atual Município do Visconde do Rio Branco, distribuiam-se coroados pelas cercanias das serras e ribeirões, em permanentes conflitos com botocudos do Alto Doce, durante os séculos XVIII e XIX. Aldeias indígenas são também encontradas no começo do século passado, às margens do rio Ubá, no atual município do mesmo nome.
Próximo ao rio Itabapuana, local habitado por nômades hostis ao branco, e também nas vertentes do Muriaé, teve Maximiliano, no século passado, notícias de puris. Neste rio encontrou antigo povoado de índios guarulhos. Capistrano de Abreu considerava os últimos como pertencentes ao vasto grupo distribuído pelo litoral por uma e outra aba da cordilheira marítima e da Mantiqueira, estendendo-se para o norte até talvez o Jequitinhonha.
As incursões de outras tribos, inclusive goitacás, produziram-lhes largos rombos, persistindo a sua presença, entretanto, tanto no Baixo como no Alto Paraíba, até que as epidemias e perseguições os liquidassem.
No século XVIII mantinham-se os puris nas cercanias dos Momos, no atual município de Leopoldina. Lá os encontrariam os faiscadores, retirantes das minas em decadência.
Por todo o sertão do Pomba fixavam-se os croatos e coropós. Desirmanados, naqueles vales e serras do Interior, adquiriram, na passada dos séculos, variações de linguagem e maneiras, que os tornariam diversos de seus ascendentes. 0 modo por que cortaram a cabeleira valeu-lhes, da parte dos portugueses, a denominação de coroados. Não podiam as condições de vida nas florestas permitir o hábito de cabelos soltos, já que embaraçavam o movimento entre a vegetação. Não parece, pois, procedente a dúvida de Maximiliano ao refutar a Corografia Brasílica de que não seriam descendentes dos antigos goitacás, visto que os últimos usavam cabelos compridos, enquanto aqueles os cortavam em pequena coroa.
0 nome de coroado é o unico que se encontra nas Memórias Históricas de Pizarro. Saint-Hilaire soube que a nação se compunha de duas tribos reunidas: os tampruns e os sararicões. Casal e Walsh escreveram que a população de Valença se formava de quatro hordas: os puris, os araris, os pitas e os chumetos.
À medida que se processava a colonização do território fluminense, com lavoura organizada e ocupação do território, surgia como conseqüência o deslocamento dos coroados para além das margens esquerdas do rio Paraíba. Por volta de 1819, Saint-Hilaire observava que cinco anos antes possuíam os índios toda a região, próxima a Rio Preto, quando nenhum branco tinha a coragem de mostrar-se. Os coroados, no século XVIII, fomentavam ataques freqüentes ao território das paróquias próximas ao Paraíba. Em 1789 foram repelidos, sofrendo pesadas perdas, pelo Capitão Inácio de Sousa Werneck, tendo então o Vice-Rei do Rio de Janeiro aproveitado a oportunidade para tentar a catequese. Nasceu dessa contingência a aldeia de Nossa Senhora da Glória de Valença, em honra ao Vice-Rei Fernando José de Portugal.
Lá campeavam os coroados. A descrição que dele nos fez Saint-Hilaire, em 1816, demonstra que já eram simples rebotalhos dos antigos e valentes guerreiros. Feios e desagradáveis, preguiçosos e tristes, indiferentes, apenas se interessavam pelo que se lhes dava de presente. Revelavam espécie de timidez simplória, ouviam o que se lhes dizia de cabeça baixa e, sem que houvesse motivos, caíam, às vezes, em gargalhadas. Estes índios, prossegue Saint-Hilaire, perambulavam a esmo nas florestas por trinta léguas da capital, sem conservar habitações fixas.
Vê-se, portanto, pela descrição do sábio francês, que os indígenas remanescentes se degradavam. Na mesma época, por volta de 1815 a 1817, Maximiliano encontraria as margens do Paraíba índios coroados, coropós e puris. Registrou a luta entre os selvagens, tendo sabido, de pessoas fixadas no local, das práticas de represálias contra os brancos.
A margem esquerda do rio Pomba encontravam-se então, em estado primitivo, índios coropós, em porfia com os puris. 0 Príncipe visitou os últimos nas florestas fluminenses, atual cidade de São Fidélis. "Eram todos baixos, não tendo mais de cinco pés e cinco polegadas de altura. Em geral, homens como mulheres, eram robustos e de membros musculosos." Avançando para o norte, atingindo o rio Itabapuana, habitado por nômades, hostis ao branco, e também pelas vertentes do Muriaé, teve notícias dos puris. Acrescenta que as florestas estavam cercadas de índios independentes e hostis.
As condições de vida nas florestas, as lutas intestinas, com as implicações sociais e lingüísticas inerentes a tais vicissitudes, fariam com que se reduzissem as variações entre croatos, coropós e puris. Pois nos conflitos, alianças e nos aprisionamentos, adviria o complexo de caracteres comuns a dificultar a elucidação da origem dos mencionados silvícolas. Pequenas tornam-se então as diferenças étnicas, sociais e culturais entre eles, tanto os da Mata Mineira como os da Região Oeste do Espírito Santo.
Viviam em estágio primitivo de organização política e social. Dispunham de um chefe, o cacique, o mais apto pelas condições fisicas e intelectuais. Em seguida, na hierarquia tribal, sucedia o caraí, feiticeiro a quem competiam as ligações com os espíritos. A poligamia era o regime familiar. A mulher pertencia a quem a mantivesse dominada.
Quanto aos costurnes, utilizavam-se do fogo (tatã) obtido pelo atrito de pedaços de pedras. Viviam da caça. e da pesca, mostrando-se violentos na guerra. Alimentavam-se de carne, milho, mandioca, preparados em panela de barro. Da farinha de milho aprontavam as mulheres uma bebida, o eivir ou viru. Von Martius descreveu-lhe o preparo: "Moradia, em comum de diversas famílias de coroado, na mata virgem perto da fazenda de Guidoval, no rio Xopotó. Algumas mulheres pisam o milho em cochos abertos por meio do fogo em toros de madeira; outras tomam a farinha torrada na panela, mastigam-na e de novo a restituem como meio de fermentação para com isso preparar uma bebida intoxicante. Outro grupo, só de homens, ocupa-se de diferentes modos, em volta do fogo, onde se prepara a farinha. Alguns índios descansam em rede."
Os croatos eram navegadores e habilidosos. Os que moravam, por exemplo, na Aldeia da Pedra, nas divisas de Minas Gerais com o Estado do Rio, e que foram catequizados pelo Padre Ângelo da Silva Pessanha, navegavam em canoas no rio Paraíba do Sul, levando madeira para Campos.
Não se pode admitir, como ponto pacífico, a origem jê dos índios cropós, croatos e puris.
0 vocabulário comum de que se utilizavam os dois últimos evidencia a influência de raízes tupis. Já os cropós possuíam linguagem diversa.
Nélson Coelho de Sena admitia que os croatos e puris tivessem vindo de Goiás, passando pelo Triângulo Mineiro e territórios paulistas e fluminenses, tendo ascendência tupi. Também Maximiliano observara a afinidade dos puris com os tupis, na denominação de tupã dada ao trovão.
Realmente, muito se distinguiam dos cropos. Ferreira de Resende, residente em Leopoldina no século passado, deixou-nos em suas memórias páginas sugestivas. Descreveu-os pacíficos, vivendo em estado de completa nudez. Desconheciam a rede, fazendo leito da própria terra. Não possuíam tabas, limitando-se as suas habitações a pequenos ranchos de beiradas ao chão e que não passavam de duas simples forquilhas fincadas à terra. Sobre elas atravessavam um pau em forma de cumeeira, e sobre esta depois se encostavam alguns outros paus, "que fazendo às vezes de caibros, e sendo afinal cobertos com qualquer coisa sobre o qual a água pudesse correr, vinha por este modo a ficar servindo ao mesmo tempo de teto e parede".
Tais ranchos eram fracos e grosseiros, cobertos de folhas de palmito. "Esses mesmos índios tinham um gênero de coberta que com facilidade e em falta de agasalho levavam muito as lampas a esses mesmos ranchos. E essas cobertas, que não sei se eram simplesmente transitórias ou se tinham alguma coisa de mais ou menos permanente, vinham a reduzir-se a isto: em fincarem eles no chão algumas cabeças de palmitos, cujas folhas ficando bem juntas e todas mais ou menos inclinadas para um único lado acabavam por lhes fornecer tal ou qual guarida, que embora muito pouco sólida e nada tivesse de muito impermeável, nem por isso deixava de lhes servir para ali passarem algumas noites ou para ali se abrigarem durante o dia contra o rigor com intempéries."
Viviam de pesca e caça. Para lambaris e peixes pequenos, faziam uso de linha sem anzol com uma isca de algumas minhocas amarradas. Quando tentavam peixes maiores, em águas mais volumosas, recorriam à rede, feita com o fio de tucum ou embira que se tira da embaúba branca.
Nada plantavam. Ignoravam de todo em todo a agricultura. Procuravam o mel da abelha, frutos de árvores, raízes. Das últimas, pareciam gostar da caratinga, espécie de cará mais duro que o comum. Arrancavam-nos da terra com qualquer instrumento que aparecesse, e as mais das vezes com as próprias mãos.
Não dispunham para atividades senão da pedra de raio, que engastavam num pau, instrumento primitivo. Facas e foices e arcos de barril só posteriormente lhes foram dados pelos adventícios, e rapidamente aprenderam a manejá-los.
Tarmbém do contato com o branco aprenderam a plantar favas mangalê, batatas-doces, bananas-da-terra, rasgando a terra com cavadeira de pau. Mas de tudo davam cabo ainda em estado verde.
0s puris eram grandes corredores. Daí a facilidade com que se entregavam à caça. Pela mataria, armados de arco e flecha, feitos de pontas de taquaras, quicê e ubá, e agachados, caçavam veados, antas, porcos-do-mato, pacas, cutias, jacus etc.
Os costumes, na região, confirmavam-lhes o baixo nível de cultura. Furavam grande parte deles a orelha e os Iábios, pintavam o corpo com tinta azul. De propriedade não tinham qualquer idéia, circunstância que explica a ausência de reação ao dominio das terras pelos entrantes.
Quando Ferreira de Resende chegou à atual cidade de Leopoldina, puris selvagens ainda perambulavam nas imediações do município. Visitou pequeno aldeamento dos tebas, na estrada que ia para o rio Pardo.
Recorda o memorialista as palavras de Varnhagen a respeito dos aimorés de Porto Seguro. Não construíam tabas nem tujupares; não conheciam a rede e dormiam no chão sobre folhas; não agricultavam, andavam em pequenos magotes; não sabiam nadar, mas corriam muito, eram antropófagos, falando uma língua inteiramente desconhecida e tinham usos estranhos. Tudo induz a acreditar, dizia Varnhagen, que eram da mesma nação representada pelos chamados agora puris. As informações coincidem com os costumes dos puris, exceto na parie relativa ao horror à água e a ferocidade antropofágica. Os da mata Mineira eram nadadores de primeira força. Dessa divergência Ferreira de Resende indaga, ressalvando a sua condição de leigo no assunto: não seriam os puris algum ramo da nação tupi? Apenas o que posso dizer, prossegue, é que os primeiros entrantes davam à moléstia chamada opilação o nome de canguari, que me parece ser tupi e que vim ouvir pela primeira vez. Este nome, porém, pode ter sido importado, bem como o das aves, o das árvores e o dos frutos, que são iguais aos dos outros lugares. Um dos rios, entretanto, que passa mais perto daqui é o Pirapetinga, nome que me parece ser puramente tupi e que não existe nos lugares donde vieram os primeiros colonizadores, para que pudesse ser transplantado.
No Baixo Paraíba e no vale do Muriaé ficavam remanescentes de guarulhos, guarus ou guarutos, cujo designativo – comilões – se lhes devia pela enorme voracidade. Parecem ter provindo dos campos de goitacá.
Os botocudos, habitantes nas matas às margens do rio Doce e seus afluentes, eram, em geral, altos, de cabelos pretos e lisos, de olhos também pretos e nariz grande. A língua não parecia ter qualquer ligação com o tupi-guarani.
Do Piranga ao rio Branco, dominavam os airuãs, ocupando o vale do antigo Guarapiranga. Próximos estavam os abaíbas (gente ruim), na serra do Araponga, atual município de Viçosa, e, em pleno sertão no século XVIII, viviam os arrepiados, com seus cabelos em trunfa, no alto da cabeça, e xopotós, indígena valente que deu nome ao rio nos altos vales do rio Doce.
Hordas botocudas tiveram outras denominações. Os batuns, os camaraxos, gentios que vagavam nos finais do século XVIII entre o Jequitinhonha e o Doce, capochos, cataranhas, chonins, cujo nome ficou conservado no ribeirão do município de Peçanha, "engerecé-mung" e "Herequere", também às margens do mesmo rio. Havia ainda outros nomes: "Imburu", "nac-nanuk", "zamplan", habitantes abaixo da foz do Piracicaba, aldeados por Marlière.
Habitavam ocas de construção primitiva, alimentando-se de caça, milho cozido, peixe e mel de abelha. Pouco entendiam a respeito das plantas medicinais; também não sabiam nadar.
Admitiam a poligamia, eram supersticiosos, atribuindo aos puris as desgraças que ocorriam. Enterravam os mortos com as suas armas, cobrindo as covas de cinza. Lançavam mantimentos, frutas e água, plantando também junto do morto mandioca e milho. Acredi- tavam na existencia de entes poderosos, dedicando-lhes danças. Também ao Sol e à Lua prestavam um culto permanente.
Nos combates, atacavam de emboscada, durante a noite. Suas flechas farpadas apavoravam os adversários.
III
0 DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA
JÁ NA FASE MINERADORA tem início o devassamento das chamadas Áreas Proibidas. A aventura partia ao sertão, desafiando a densidade da mata e a suspeita do descaminho.
Era acesso por rios e caudais, veredas e atalhos. Fluvial o avanço, dava-se a entrada por meio de rústicas embarcações, adiantando-se o canoeiro paulatino rio acima ou, em descendo, atento às súbitas corredeiras. Desdobra-se o balcedo, e quando os aventureiros se detinham, a exploração era feita com exagero de cuidado. Romper pela matarama, desfazendo dificuldades, enfrentando perigosos animais, tudo consistia em risco, sobretudo quando afadigados abriam a clareira para o repouso.
A princípio, era a busca do metal precioso. Rasga-se a picada sem destino, rompendo macega, transpondo banhado, improvisando passagem para súbito retorno, quantas vezes, ao sinal do atalaia ou de mistério não decifrado. O rumo, quando escolhido, fundava-se em termos de vagos informes, ouvidos de catecúmenos ou de batedores experimentados, porém imaginosos e broncos. Os afoitos acabavam de esbarrar com a natureza selvagem.
O índio era óbice àquelas investidas. Às vezes, diante do sertanista, ele surgia de fito na destruição e no incêndio, matando o invasor sem piedade. Pelas matas, de longe ern longe, irrompiam coropós, botocudos e puris. Quase sempre relutantes às tentativas de aproximação, infensos, reagiam em grita a simples presença de faiscadores a descer para os vales.
Ao ultrapassar as fragas da Mantiqueira, o Caminho Novo de Garcia Pais iria permitir, por volta dos últimos anos do século XVIII, que pelo Alto Rio Doce, rompendo por bocainas e chavascais, se alcançasse a Zona da Mata. Anônimos desbravadores ganham ao viés atalhos à esquerda do caminho, procurando contatos com os aborígines dos aldeamentos mais próximos. Buscavam, a princípio, ouro de aluvião, abarracando em qualquer lugar, perto de ribeiros.
Para povoar o território se multiplicam as concessões de sesmarias no curso do século XVIII. Entre os anos de 1710 a 1822 o total ultrapassaria 6.642, com 4.257 léguas quadradas, de tamanho que variava, segundo Gerber, entre o máximo de 48 léguas e o mínimo de 60 braças quadradas.
Às margens do Caminho Novo estavam as sesmarias, cujas concessões visavam, em pleno fastígio do ouro, a garantir a formação de lavouras que permitissem suprir os bandeirantes em suas jornadas às minas. Para descanso do viageiro, e abrigo nas longas caminhadas, os pousos nasciam ao comprimento da grande via. Furnas e casas-fortes para segurança das riquezas transportadas, capelas para oração. Numa delas, obtida em 1709, por Domingos Gonçalves Ramos, na atual cidade de Santos Dumont, então despontou um agrupamento com casario disperso, futuro arraial de João Gomes, nome de um lavrador adquirente. Nas terras aparecem ranchos onde os viajantes do Caminho Novo se abrigavam. Próximo, cresceuram lavoura e criação. Levanta-se, mais tarde, a primitiva capela de São Miguel e Almas, cuja construção deva-se talvez ao velho João Gomes. A capela, à margem do Caminho, é dedicada a São Miguel e Almas, protetores invocados pelos bandeirantes na perigosa travessia da Mantiqueira.
À orla do Paraibuna vão brotando localidades diversas, como as atuais cidades de Simão Pereira, Chapéu-d’Uvas, Matias Barbosa.
Em 1714 o Governador D. Brás Baltasar da Silveira propôs a divisão da capitania em quatro comarcas: a primeira, a de Vila Rica de Ouro Preto; a segunda, a de Vila Real de Sabará; a terceira, a do Rio das Mortes; e a quarta, a do Serro Frio. A terceira abrangia toda a extensão desde o Paraopeba e Congonhas rumo ao sul até o Paraibuna (onde começava a capitania do Rio de Janeiro) e a serra da Mantiqueira (raiz das duas capitanias de Minas Gerais e São Paulo) . O território à esquerda do Caminho Novo, às margens do Paraibuna, era relativamente montanhoso, de ameno clima, e cortado pelos afluentes do Paraibuna. Por suas margens a flora da região era rica de plantas medicinais, e na mata próxima havia jacarandá, cedro, braúna, enfim madeiras de construção e marcenaria. Quanto à fauna, a selva mostrava-se freqüentada por capivaras, veados, pacas e porcos-do-mato.
Já se tentara também dar começo à catequese naqueles sítios, no primórdio do século XVIII, com a criação, por Carta Régia de D. João V, da Freguesia de São Manuel dos Rios Pomba e Peixe, subordinada ao Bispado de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Porém as entradas sempre partem do Caminho Novo, independentemente das medidas oficiais.
Diogo de Vasconcelos registra que então já habitavam muitos colonos à beira do Caminho Novo, "que de distâncias em distâncias davam pousada e rancho aos viandantes". O Guarda-Mor Garcia Rodrigues Pais já estava em sua sesmaria da Paraíba, no lugar atual da cidade. A sua casa, à margem esquerda do rio, e as plantações empregavam cem homens. À direita havia a venda e o rancho para os tropeiros. Pouco adiante residiam Simão Pereira de Sá, depois o Coronel Matias Barbosa da Silva, por fim o Alcaide-Mor Tomé Correia e Manuel de Araújo, entre cujas sesmarias floresceu mais tarde Juíz de Fora.
Naquele tempo havia o funcionário, nomeado pelo Governo, encarregado da Justiqa em lugares distantes. O onomástico juiz-de-fora liga-se a tal circunstância, segundo alguns pesquisadores.
Nomeado em 1707, João Carlos Ribeiro Silva teve a residência na Alcaidemoria, à margem esquerda do rio Paraibuna. Volvidos alguns anos, transferiu-se para um sobrado que mandou construir e que existiu até há poucos anos. A Fazenda Velha, como era denominada, foi pouso e passagem, durante dois séculos, de forasteiros e sertanistas. Nela se albergou Tiradentes, em suas viagens de alferes e propagandista da Inconfidência.
A iniciativa de catequese parece caber à zona do rio Xopotó. No meado do século XVIII, por volta de 1757, próximo ao sítio da atual cidade de Senador Firmino, o Capitão Francisco Pires Farinho lograva pacificar alguns coroados da região. Poucos os lavradores e sertanistas que chegavam às imediações do rio Turvo. Ao local surge um sacerdote com o fito de catequizar o ameríndio. O Padre Joaquim Martins, português de nascimento, alcança os sertões do Xopotó.
Mas somente no final de 1765, por ordem do Governador da Capitania, D. Luís Diogo Lobo da Silva, confirmou-se a nomeação do Padre Manuel de Jesus Maria para o cargo de Diretor dos índios da Aldeia dos Rios Pomba e Peixe. Natural de Casa Branca, termo de Ouro Preto, o reverendo era filho de branco com preta africana de Angola. Em Vila Rica tornara-se sacristão. Nos fins da década de sessenta, em 1767, alguns agricultores afinal reuniam-se para assistir à primeira missa celebrada naquelas plagas, em altar pequeno coberto de folhas de palmeiras. Era a Aldeia de Pomba e de Peixe que se constituía.
Jesus Maria pôs-se à empreita da catequese, adentrando-se nos sítios próximos, apagando com feitos caridosos a desconfianqa dos silvicolas. O sacerdote era tenaz, não se limitando à atividade religiosa. Reivindicava medidas de administração. Há pedidos insistentes seus, junto às distantes autoridades, no sentido de obter a abertura de um caminho de cavalo para o rio Xopotó.
O Padre fez construir, com a ajuda dos primeiros lavradores, igreja e casa dos índios, denominada Casa do Rei. Repontam, nesta epoca, certas preocupações com a catequese por parte das autoridades. Em 1776, de Mariana determinava-se a obrigação de um tributo em oitavas de ouro com o fito de custeio da conquista dos índios puris e botocudos da região do Presídio e Conceição do Turvo.
Após trinta e cinco anos de apostolado, faleceu na mesma freguesia de São Manoel dos Sertões o Padre Jesus Maria.
A presença da poaia, planta medicinal, salienta Capistrano de Abreu, facilitaria o comércio com os índios, tornando possível a tentativa bem sucedida da passagem do Alto Rio Doce para o Pomba. Coroados, coropotos, extratores da erva, estabeleceram os contatos com os aventureiros. Na zona da ipecacuanha, rápida se fez a penetração. Em 1780, Miguel Henriques, o Mão-de-Luva, chegava às minas de Cantagalo pelo caminho de Pomba.. Levas de sertanistas internavam-se no vale, descendo os rios, rumo aos aldeamentos do atual município de Guarani, entravam pelos afluentes do Pomba ou. beiradeavam o ribeirão do Tijuca. Tal êxodo de geralistas levaria o Governo à criação de postos fiscais.
Nesta época, afrouxava-se a política protetora da Metrópole com relação aos Sertões do Leste. O Governador Luís da Cunha Meneses determinava-lhe a exploração, abria-os ao povoamento, por não lhe parecer haver terras inúteis "pela falta de se conhecer as utilidades que se poderão tirar das mesmas". Encarregou o Sargento-Mor do Regimento de Dragões, Pedro Afonso Galvado de S. Martinho, de examinar as Áreas Proibidas a fim de reconhecer como se deveriam levantar barreiras eficazes à segurança dos reais interesses. Seria também por essa portaria que o Governador ordenaria ao Alferes Joaquim José da Silva Xavier, então incumbido na ronda da mata, que acompanhasse o Sargento-Mor no exame das possibilidades auríferas das terras e de sua capacidade de acomodação de gente. A ambos, sargento e alferes, cumpria o reconhecimento de estradas e caminhos que abertos estivessem de ligação entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro.
De tal missão resultaria o desbaratamento do núcleo de Mão-de-Luva, Manuel Henriques, afinal preso e remetido para Vila Rica com os seus companheiros de faiscagem. O percurso do Sargento-Mor revela, segundo observação de Diogo de Vasconcelos, como o País já estava sulcado de caminhos.
Deixando o Alferes em sua exploração, o Sargento Mor marchou, atravessou os Sertões do Leste, chegando à beira do Paraíba, nas imediações de Porto do Cunha, estabelecido para o Registro.
Para prosseguir a obra de Jesus Maria, na região do antigo Presídio, atual Visconde do Rio Branco, ali chegou e viveu entre os croatos o Padre Francisco da Silva Campos, sacerdote ordenado em São Paulo e natural de Barra Longa. Administrou aos íncolas rudimentos de agricultura, ensino de cultivo de cana e fabrico do açúcar.
Subindo pelo Pomba, penetravam os sertanistas no vale do Xopotó. No meado do século XVIII a colonização da área se intensifica. Estabeleciam-se os adventícios em pobres casebres cobertos de colmo e folhagens, onde, alguns anos depois, já pacificados os croatos, surgiria o arraial que receberia o nome de São João Batista do Presídio.
A pacificação dos silvicolas originaria diversos povoados. Exploradores em busca de ipeca e poaia chegavam à região, atraindo os índios para o escambo. Numa das representações do Padre Manuel de Jesus Maria há referências a aspectos condenáveis de tal comércio.
Abre-se depois, lembra-nos Caio Prado Júnior, paralelamente ao rio Doce, uma variante terrestre que se destinava à condução do gado de Minas Gerais ao Espírito Santo. A estrada tem início no trecho mineiro. Da região de Vila Rica, as picadas se estenderam até a cidade de Ponte Nova, às margens do rio Piranga. Segundo a tradição, o nome deve-se à ponte levantada pela Comissão a fim de alcançar a margem direita do rio no ponto em que se estreita, oferecendo acesso mais fácil..
Construída a obra de arte, fixou-se numa parada o primeiro núcleo de habitantes. A mata foi atravessada. Um sacerdote, João do Monte de Medeiros, cederia, por doação, em 1770, um terreno entre o córrego Vau-Açu e a sesmaria da Fazenda da Vargem para patrimônio da capela.
Com o avançar sobre charcos e serrarias, enfrentando perigos de ciladas, os forasteiros afoitavam-se às terras banhadas pelos afluentes do Pomba. O comércio da poaia facilitava a penetração. Os índios recebiam pelas ervas a aguardente introduzida em seus aldeamentos. De pouco valera a advertência dos sacerdotes. A arrancada dos poaieiros acentua-se ano a ano. Provocava-se o devassamento e conseqüente povoação, mas o comércio infrene, desapiedado e brutal levava o selvagem ao extermínio.
Os principais documentos do começo do século registram as circunstâncias trágicas da colonização destes sítios. Arredio e temeroso, esquivara-se a princípio o ameríndio a travar entabulações com os adventícios. Para vencer a dificuldade natural, os aventureiros lançaram mão da aguardente. Em menos de cem anos o aborígine estaria liquidado.
A aldeia do Xopotó, desenvolvendo-se no local, seria chamada posteriormente de Presídio, atual Visconde do Rio Branco. Segundo a tradição, lá existia expianto de criminosos políticos. Não há, no entanto, qualquer documento que se refira a tal prisão. Valendo-se mesmo de depoimento de moradores valetudinários, absteve-se o Padre Dario Schettini de emitir juízo a respeito. Há outra versão sobre a origem do arraial. Naquele tempo eram as cabeceiras do córrego Caetés, nome do ribeirão Xopotó em suas nascentes, na serra de São Geraldo, habitadas por várias tribos caetés. Mansas, delas procuraram aproximar-se vários desbravadores.
Mas alguns, afinal, com eles se desentenderam. Rebelaram-se os índios, recebendo castigos e represalias.
Foram postos na prisão, e daí derivaria o nome de Presidio. Procedente de outros pontos, mas sempre do centro minerador, obliquando à direita e à esquerda, em crescido número, gente nova surgia à demanda de terra. O desencanto da faiscagem já tornava aqueles aventureiros em pretendentes de terras para a lavoura. Par- tindo de Guarapiranga, atual Piranga, Mariana, Itabira, várias famílias apoderaram-se de terras então devolutas, nelas estabelecendo propriedades agrícolas.
Os povoados vão nascendo no processo dessa grande migração. Um pequeno núcleo, às margens do rio Turvo, aproximadamente nos fins do século XVIII, seria, vinte anos após, a Freguesia de Santa Rita do Turvo, cidade atual de Viçosa. A gente que povoou a região procedia de Mariana e de Ouro Preto.
Subiam os adventícios, muitos deles portugueses já desiludidos com as Gerais, às montantes dos rios Turvo e Xopotó, atravessando regiões sesmadas. Nas matas, dispartindo-se, deram origem a novos núcleos em Calambau, Dores do Turvo, Conceição e Rosário da Aliança. Apesar de pobres e pedregosas a montante, as terras prestavam-se ao amanho em suas baixadas úmidas e irrigáveis, nos vales tributários dos rios Ubá e Paraopeba.
Nas serras de Santo Antônio das Marianas a lavoura seria de cereais, cana e tabaco. As reservas da mata no planalto e na serra do Divino garantiam a qualidade das terras, de vermelho claro nos altos e cinzentas nas baixadas e planícies.
A descer pelo rio Pomba, ainda no final do Setecentos, José Furtado de Mendonça edificou a casa de uma fazenda – Roça Grande. Adquiriu, mais tarde, terrenos próximos, doando-os à Cúria a fim de ser criado o curato. A capela seria edificada, recebendo o nome de Capela Rio Novo de Baixo, invocando-se para padroeiro o nome de São João Nepomuceno.
Naqueles sítios, os sertanistas penetravam em direitura a ravinas que confluiam ao córrego Canjica, cujas águas subiam até o ribeirão da Roça Grande. A morraria a dividir os sítios do atual município de Guarará levava-os naturalmente ao vale do rio São João. Conheceriam, nas caminhadas, as roças à fímbria do rio Ubá e Cataguases.
A catequese já iniciada permitiu a fixação dos agricultores. Nos princípios do século XVIII fazem-se doações de sesmarias em ambas as margens do ribeirão do Ubá.
Então, alguns exploradores alcançaram um rio pequeno, cujo curso é de atual forma irregular, indo para a frente para trás, que recebeu o nome de Caranguejo. Prosseguindo a descida, mais abaixo encontraram um rio maior, sem aquelas curvas. Tratava-se de outro, o que provocou de um dos aventureiros a exclamação de que era Rio Novo. Às margens nasceria depois, nos principios do século, certo núcleo. A terra era fértil, o rio navegável e, em pouco tempo,transformou-se ele em povoado.
Pelas regiões ribeirinhas irrompem os sertanistas. De Borda do Campo, dois peões, acompanhados pelas mulheres, deitam acampamento às margens de um rio sereno. Fazem o capão em derredor da choupana e olham com surpresa a abundância de tartarugas em suas águas remansadas. Depois se desentendem. Parte um deles, Antônio José da Costa, de canoa rio abaixo.
Anos depois, descendo o rio em exploração, João Maqueira, o outro, encontra o cunhado fixado em casebre distante. Abraçam-se comovidos naquele mundo da selva. Ao redor da palhoça, aberta por Antônio José da Costa, o roçado vai crescendo, e pelas margens do Cágado as plantações dilatam-se até o ribeirão São João. Anos depois, ao sopé de uma colina, surge afinal um rancho de tropeiros.
A rancharia cresce com o tempo, toma a forma de rua. Seria o futuro Mar de Espanha.
O avançamento sem-fim para o Leste, rumo às terras fluminenses, prosseguia pelos vales dos afluentes do Paraíba, deixando pelo caminho gente fixada. Os braços da caminhada estendiam-se pelo sertão do Leste, no desbravamento e povoação da mata.
Nos fins do século XVIII os primeiros aventureiros exploram a região do atual município de São José d’Além-Paraíba. A criação do Porto do Cunha, segundo a tradição, provém do nome do barqueiro que fazia o transporte entre as margens do Paraíba. Os entrepostos de Sapucaia, Rio Preto e Barra do Pomba já então existiam. Os tropeiros trilhavam todos os quadrantes até o porto de Magé. Diante da capela do povoado de Sant’Ana, em Porto Velho, no Estado do Rio, desenvolve-se um intenso movimento de tropas. Atravessavam em barcaças o Paraíba, transportando animais e cargas. Apareceu, nesta época, a lavoura do Padre Miguel Antônio de Paula, ocupando extenso trato de terra, estendendo-se de Cachoeira de Sapucaia até além do Remanso. O padre doaria mais tarde a área para a construção da igreja do povoado nascente, o futuro São José d’Além-Paraíba.
Em 1813 chegaria à Zona de Mata Guido Tomaz Marlière. Francês de nascimento, pouco se sabe das razões que o trouxeram ao Brasil. Seria preso em 1811, já em Vila Rica, agregado ao posto de tenente e graduação de capitão ao Regimento de Cavalaria das Minas Gerais e remetido ao Intendente-Geral de polícia no Rio de Janeiro, sob suspeita de emissário de Bonaparte e de agente subversivo. Em liberdade pouco depois, por ausência de provas, seria, no posto de tenente-coronel, nomeado comandante das divisões militares do rio Doce e Encarregado da Civilização e Catequese dos Índios. Iniciaria, então, a obra de desbravador e catequista dos sertões da mata. Até então, observa Luís Pedreira do Couto Ferraz, indomável era o ódio que nutriam os indígenas pelos colonos. Os últimos também os caçavam com violência. Sucediam-se as represálias. Aqueles atacavam os colonos, ateando fogo aos paióis de milho, devastando plantações e assassinando famílias inteiras.
Neste entretanto, dá começo Marlière ao seu sistema de catequese, rnandando dizer ao Governo que preferia balas de milho às de chumbo, até então empregadas para subjugar os silvícolas. Marlière instalaria o seu quartel-general no lugar denominado Serra da Onça, chamando-o Guidoval.
O estabelecimento facilitou as comunicações entre os aldeamentos próximos, cujo trajeto se fazia por picada aberta na selva pelos próprios índios. Mandou construir, às margens do Xopotó, um rancho de sapé para abrigo dos viajantes. Ali surgiria o Arraial do Rancho do Sapé, onde os moradores fizeram construir a igreja, atualmente a cidade de Guidoval.
Quando Marlière chegou ao lugar denominado Porto dos Diamantes, em 1828, lá havia, um arraial com trinta e oito fogos de brasileiros e várias aldeias de índios coroados, coropós e puris. A origem do agrupamento, segundo versão corrente, deve-se a vários padres que lustro antes aportaram ao local, atraídos por notícias de diamantes no rio Pomba. Moreira Pinto refere-se à origem do povoado, fixando-a no começo do século XIX. (A denominação de Meia-Pataca, dada ao ribeirão, estendida ao povoado, liga-se à história de garimpeiros que, acampados, colheram o peso de meia-pataca de ouro em uma só bateiada nas areias. De um córrego, chamado das Lavras, afluente esquerdo do Meia Pataca, foi o ouro extraído, guardando em seu nome o testemunho da mineração.)
Marlière fez a solene aceitação de terrenos que lhe fazia o Sargento das Ordenanças Henrique de Azevedo para o fim de instituir a capela e fundar a povoação. Traçaria, pois, usando das atribuições do Diretório, os limites do novo arraial. A notícia do evento publicou-a o jornal de Ouro Preto. Daí em diante perdeu a povoação o nome primitivo de Porto dos Diamantes, passando a chamar-se Arraial do Meia-Pataca.
Marlière seria o semeador de povoados pelas bandas do rio Pomba. As atuais cidades de São Geraldo, Guiricema, Ubá, Guidoval, resultaram-lhe da ação pacificadora. Da Várzea do Presídio partiam lavradores às terras ferazes de São Geraldo, já que cessara a ameaça de hostilidade indígena. Alguns anos mais tarde erguia-se a capela em louvor de São José, onde permaneceu o povoado até 1880.
Próximo, outro arraial seria beneficiado pela pacificação do gentio. O fundador da atual Guiricema teria sido o furriel José Lucas Pereira dos Santos, vindo de Campos dos Goitacases nas alturas de 1810, com família e escravaria, para a região do rio Bagres. Em suas roças empregou índios, razão por que se desentendeu com Marlière, já empenhado na pacificação de todas as tribos. Mas em 1825 o furriel constituiu o patrimônio da capela e obteve, tempo depois, por ato imperial, autoridade sobre os puris.
Em 1815 a ação pacificadora de Marlière ligava-se ainda à atual região do município de Ubá, onde, ao lado de aldeias indígenas, às margens do rio, viviam alguns núcleos de portugueses. Requereram então ao Diretor-Geral das Divisões a criação de uma capela, que se comprometeram construir a expensas próprias.
A tradição registra que o Capitão-Mor Antônio Januário Carneiro declarara ter o propósito de doar terras para o patrimônio da nova capela. Marlière considera-o principal interessado. Em 1823 a povoação recebia a primeira visita do bispo de Mariana.
Prossegue, no primeiro quartel do século XIX, a audaz entrada, feita em busca de terras de sesmarias. Tropeiros já sulcavam os pontos conhecidos.
Certa vez (diz a história que a tradição conservou), puseram, à noite, o feijão ao fogo, mas, por culpa do cozinheiro, jogaram-no fora, exclamando: "Feijão Cru". No local, após algum tempo, cresceria um povoado. Por volta de 1832, nele se rezaria a primeira missa, na capela coberta de bicas de palmito e levantada no alto de um oiteiro. Seria a futura Leopoldina. Nesta, todas as famílias pioneiras, que chegam para a lavoura, procedem das velhas cidades do ouro.
A jusante do Pomba, em pequena armação, Constantino José Pinto, seguido por quarenta homens, chegou ao rio Muriaé, em cujas águas desceu até pouco abaixo dos rios Glória e Preto. Lá encontrou puris, com quem manteve contatos. O sertanista procurava raízes e ervas medicinais, observando a riqueza da região e facilidade do trato com o gentio.
Decidiu levantar o seu abarracamento a fim de promover o escamho com os selvagens. O ponto de desembarque recebeu o nome de Armação, e o de Rosário, o local escolhido para estabelecer-se.
Constantino, natural de Barbacena, era radicado em Presídio, onde possuía terra e família. De Marlière havia recebido o cargo de diretor dos puris, cujo aldeamento teve início com demarcação, a 3 de setembro de 1819, das terras destinadas à sustentação dos índios.
Com o tempo foram aumentando as construções de Rosário e outros exploradores sendo atraídos. A povoação nascente receberia o nome de Quartel de Robinson Crusoé, dado por Marlière, que para lá mandou João do Monte, um de seus subordinados.
Inicia-se nesta época o devassamento do vale do Carangola. O estranho nome dado ao rio, subafluente do Paraíba, julgava-se ser devido à curiosa circunstância de serem as margens juncadas de carás, que nos lagamares, após as cheias, eram retidos pelo capim "angola". Todavia, nos anos noventa, localizou o autor deste volume velha povoação angolana com nome quase idêntico, isto é, Carangolo. Forma-se uma concentração de criadores de gado nos extensos pascigos ribeirinhos. Por córregos afluentes se distribuem os criadores, reunindo-se na atual cidade de Tombos, cujo nome se deve à cachoeira com tríplice queda que acidenta o curso do rio. Um dos fazendeiros, Maximiliano José Pereira de Souza, doaria parte de sua propriedade para abertura do patrimônio do povoado, em 1849.
Bem próximo, já havia pequeno núcleo de lavradores. Tentara-se, no final do século XVIII ou princípios de XIX, a garimpagem no rio já referido que corta a cidade. Faiscadores procedentes da região do Serro, galgando o Caparaó, chegaram a pontos próximos do ribeiro de São Mateus, na atual cidade de Faria Lemos. O sítio era dominado pelos puris, o que facilitava em grande parte a tarefa de pesquisa.
Não encontrando o metal, verificaram, no entanto, a fertilidade das terras e deram início à agricultura. Inúmeros aventureiros vão assim chegando nas primeiras décadas do século, atraídos por caça, pois o comércio de peles se fazia de modo lucrativo com a praça de Campos. Formar- se-ia, afinal, núcleo, por volta de 1833, denominado Arraial Novo. Seria o ponto de encontro de gente vinda do Serro, através dos afluentes direitos do Doce e dos aventureiros que, pelo rio Muriaé, chegavam do vale, do Glória e Pomba.
Em 1840 surgiram os Lanes, procedentes da barra do Muriaé, acampando no local onde se encontra hoje a Praça da Matriz Coronel Maximiliano.
Cresce o povoado. As matas são derrubadas, inicia-se o cultivo de cana, de arroz e de outros cereais. Havia poaia por toda a parte, extraída pelos puris, já relacionados aos interessados que conduziam a mercadoria para a praça de Campos.
Em 1842, homenageando os liberais de Teófilo Ottoni, o povoado receberia Santa Luzia como padroeira. A circunstância explica-se pela presença de chimangos da região mineradora. Após os Lanes,vieram outras famílias, como os Batalhas, de Cantagalo, os Vasconcelos, do Serro, os Frossards, da colônia suiça de Nova Friburgo, os Pereiras de Sousa, do Rio Novo, os Pedrosas, de Ouro Preto, os Machados, de Santa Bárbara, os Soares, de Mercês do Pomba, a família Carlos, de Cataguases.
IV
O DEVASSAMENTO DA BACIA DO DOCE
OS DESBRAVADORES CHEGARAM, ainda, da região mineradora. Às margens dos ribeirões e rios, iam lenta e firmemente penetrando, destruindo os cerrados para a picada sem rumo. Ao verem as serras, de longe, quedavam-se no cálculo dos picos elevados e através de depressões e convales para elas rumavam, vadeando os rios ou neles navegando em canoas improvisadas.
Nas cabeceiras do Doce e de seus afluentes estavam as lavras de Ouro Preto, Mariana, Itabira e Serro Frio, regiões que a partir dos últimos anos do Seiscentismo se povoaram rapidamente. À medida que decaía o ciclo minerador, no século seguinte, abalançaram-se os aventureiros em direção às bacias do Araçuaí e Jequitinhonha. Na primeira delas formavam-se as Minas Novas, enquanto que na segunda os primeiros exploradores encontraram diamantes. Pois, se as cabeceiras do Doce eram tão ricas, deveriam ser também as regiões mais baixas do rio.
Senhores da região do Cuieté, os botocudos começaram a sentir a ameaça aos seus domínios. Na década de trinta do século XVIII, chegando até as proximidades de Mariana, espalharam terror e devastação pelas zonas de Furquim e Barra Longa.
Então se conjugam aventura e defesa. Em 1734, o Mestre-de-Campo Matias Barbosa foi incumbido de organizar uma bandeira a fim de combater os botocudos, devendo descer o Doce. O Governador Antônio de Noronha deu inicio à abertura de picada a fim de alcançar
Cuieté. Durante dois anos, aproveitando-se apenas a época da seca, os picadores realizaram o serviço.
Outra expedição, em 1746, atingiria os sertões do Doce, onde se encontraram pintas de ouro nas embocaduras de afluentes de ambas as margens. Decorridos quatro anos, o sertanista João de Azevedo Leme, residente no Rio Manso, alcançou as cabeceiras do rio Araçuaí, subiu-lhe as nascentes até a cordilheira, e, descendo-a, percorreu a extensa faixa, pesquisando córregos e ribeiros. Ao sair do rio Vermelho até a barra do rio Turvo Grande, verificou que nas águas, sempre barrentas, era feita a mineração, provavelmente por negros refugiados em quilombos.
João de Azevedo Leme obteria do Senado da Câmara o direito de explorar as lavras naquela parte, e rumava para a caminhada exaustiva, que o leva, por fim, ao descobrimento do córrego das Almas.
O interesse pelo ouro naquele sítio, em face da mineração cadente, levaria o Governador da Província, D. Antônio Freire de Andrade, a organizar expedição para a conquista do rio Suaçuí Grande.
As explorações conjugam-se à catequese, passando um vigário a integrar cada aventura.
Ao rio Vermelho, afluente do Suaçuí Grande, chegaram João Peçanha Falcão e o vigário Francisco Martins em 1758, prosseguindo, em suas pesquisas, até o Doce. Subindo-o e passando pela foz do Suaçuí Pequeno, encontraram ouro de aluvião. Chegaram afinal ao Córrego das Almas, e de lá, no cume de uma serra, descortinaram vasta zona de mata virgem. O acontecimento recebeu a denominação de Descoberto do Pessanha e espalhou-se a notícia pelo centro da província.
Os botocudos não estorvaram o desenvolvimento do nascente povoado, então mais conhecido como Santo Antônio do Pessanha. Mas só em 1807 o governo enviaria o destacamento de oitenta homens e um quartel seria construído a oito léguas do local, nas proximidades do rio Suaçuí.
O núcleo desenvolveu-se. Numerosas famílias do Serro, Conceição, Itabira e Diamantina chegaram, faiscando e lavrando. Seus habitantes eram auxiliados pelos indígenas panhames, malalis, capoxós, macuinis e monoxós, já catequizados.
A decadência da mineração acabaria por alterar a política metropolitana. O erário dessangrado não mais assustava o descaminho, ficando em desuso o preceito do velho alvará de 1733, que proibira a abertura de novas picadas para a capitania de Minas Gerais. Abrem-se, pois, comunicações rumo ao litoral, algumas atravessando as Áreas Proibidas. As bacias orientais da capitania são violadas por sertanistas. O rio Jequitinhonha recebe as canoas de algodão das Minas Novas, que demandam Belmonte, no litoral. Em 1817 visitou Saint-Hilaire a região, e chegaria até seu ponto extremo, a colônia nascente às margens do rio, abaixo do Presídio de São Miguel e já quase nos limites da capitania de Porto Seguro. Ao chegar ao arrraial de Itambém, chamou-lhe a atenção o lugar do Pessanha, que conheceu, alterando seu primitivo itinerário. Ao regressar, subiria a Serra e veria Minas Novas, percorrendo parte final dos roteiros de Tourinho e Marcos de Azeredo.
Também na bacia do Doce a colonização atinge, na fase mineradora, os altos afluentes do rio. Von Martius visitou o local em 1818 e o descreve em seu Diário. A ocupação fazia-se sobretudo pelo aldeamento de índios, muito numerosos, os quais,, uma vez contidos, praticavam a agricultura e eram aproveitados como mão-de-obra nas fazendas onde se estabeleciam.
Desde o século XVIII, em seu meio, lavra-se ouro em pequenas proporções nos rios Cuieté (Caratinga) e Manhuaçu.
Abre-se a via terrestre, nos princípios do século XIX, aproximadamente em 1811, destinada ao gado que descia para Campos, dispensando assim o velho trajeto pelo Rio de Janeiro. O Correio Brasiliense refere-se à estrada, que ia do registro do rio Pomba até Salvador. Rasga-se, mais tarde, paralelamente ao rio Doce, uma variante terrestre destinada à condução do gado de Minas Gerais ao Espírito Santo.
A estrada partia da cachoeira do rio Santa Maria, onde hoje se encontra Porto do Cachoeiro, prolongando-se depois até Porto Velho, defronte a Vitória. Rumando para oeste, cortava os rios Guandu, Manhuaçu, Casca, e por Ponte Nova, alcançava Mariana e Vila Rica.
Em setembro de 1814 recebe Duarte Carneiro do Governador do Espírito Santo a incumbência de rasgá-la. A 10 de abril do ano seguinte inicia a empresa. Sobe no território capixaba o rio Santa Maria da Vitória em direção ao território mineiro. A estrada prosseguia rumo oeste, atravessando o rio Pardo e algumas léguas depois o rio José Pedro, construindo-se o Quartel do Príncipe próximo à atual cidade de Manhumirim.
A criação da "Junta Militar de Civilização dos Índios, Conquista, Colônia e Comércio do Rio Doce", em 1808, por lei do Príncipe Regente, tinha por escopo o devassamento das margens da via fluvial. Entretanto, as atividades tornaram conflagrada a região, pois se fazia a política indigenista preconizada pouco antes pelo Governador da Província. Dizia Pedro Maria Xavier de Ataíde que, "das diferentes espécies de índios, o botocudo por experiência é selvagem que se não pode civilizar; é inimigo dos outros índios, devorando-os, como faziam em outros tempos os que viviam no Cuieté; os portugueses não escapam igualmente à sua voracidade, e o único meio, que há a seguir, é fazê-los recuar com força armada ao centro das matas virgens".
Com tal entender, a Junta passou à guerra, objetivando afastar os indígenas do rio e possibilitar a navegação. Saint-Hilaire condenaria a violência, considerando-a um absurdo de tempos mais bárbaros.
Marlière, em 1819, partiria para o local, escolhido para iniciar a conquista e catequese. Modificou os planos e procurou o primeiro contato pacífico com os botocudos. Mandou construir uma grande canoa, ocupou-a de ferramentas e provisões e, entregando-lhe o comando ao Sargento Antônio Pereira Nascimento, aviou-o à missão de conquista dos botocudos.
Após hesitação de ambos os lados, aproximou-se a canoa de um grupo de silvícolas e distribuiu os presentes de Marlière. Alguns botocudos, dirigidos pelo chefe e seu filho Pocrane, aceitaram o convite para visitar o chefe dos brancos.
Explica-se o bom êxito do sertanista e colonizador por motivos óbvios. A chegada do grupo indígena ao primeiro Quartel do Inspetor foi recebida festivamente, e dias depois regressaram os botocudos, deixando Pocrane ao lado de Marlière.
O jovem índio auxiliaria o esforço de aproximação a seu povo comunicando-se com outros lotes indígenas para convidá-los a visitar o Quartel do Inspetor, onde recebiam anzóis, camisas, chapéus, calças e cobertores, ferramentas e miçangas. Prosseguiu Marlière até 1824, quando declarou que a civilização dos botocudos não mais seria problema para incrédulos.
A pacificação dos indígenas iria permitir que levas e levas de mateiros se atirassem à bacia do Doce para cultivo da terra fértil. Nesse esforço, formaram-se povoados. Os nacnenuques, ao norte, fizeram as pazes com rivais da parte sul, os cracnuns e quejaruins. As aldeias indígenas já podiam ser visitadas por brancos em atividade de comércio. Estrada carroçável ligava o ribeirão Santo Antônio a Antônio Dias, abaixo.
Em janeiro de 1828 Marlière relatava ao Vice-Presidente da Província a existência dos diversos agrupamentos de gentio ao longo do vale médio do Doce e às margens do Jequitinhonha. Em Petersdorff, aldeamento botocudo ao sul do Doce, os selvagens dedicavam-se à pesca, à caça e à extração de poaia. Iniciavam-se também na agricultura. Saint-Hilaire a ele se refere, situando-o a 10 léguas acima da embocadura do Piracicaba.
Os botocudos ainda formaram o aldeamento de Bananal Grande, cultivando, próximo ao ribeirão do mesmo nome, em território do atual município de Tarumirim. Dispunham de grande cemitério, que servia de pouso para os índios da margem meridional do rio Doce que iam do Cuieté a Petersdorff.
Havia o arraial do Cuieté, hoje pertencente ao município de Conselheiro Pena. Região de expianto. Servida por estrada que a ligava à capital da província, recebia presos comuns, vadios, e pequenos delinqüentes. Outro povoado era a Barra do Cuieté, a cinco léguas da aldeia do mesmo nome.
Em 1841, partindo de Viçosa, Domingos Fernandes Lana, oriundo de Araponga, invadiu a mata, acompanhado de índios catequizados e escravos. Procuravam poaia, e nas proximidades da atual cidade de Caratinga acamparam para a exploração. Durante alguns anos calcorrearam as imediações, comerciando com nativos. Afinal se retiraram. Em princípios de 1848 três outros aventureiros chegaram ao local. Traziam famílias e rebanho, com o propósito de radicarem-se.
Acompanhando o curso do rio Caratinga, denominação indígena indicativa de um tipo de batata abundante em lugares de água estagnada, foram encontrar os caudais do Manhuaçu e Cuieté.
Um deles, João Caetano do Nascimento, retornou, fixando-se num dos contrafortes da serra de Jacutinga, homenagem dos indígenas à espécie de galinha selvagem que povoava as matas da região. Outro, João Antônio de Oliveira, encaminhou-se ao Ribeirão do Boi (Entre Folhas), alcançando a povoação de Cuieté, antigo Degredo.
João Caetano do Nascimento deu início de pronto à derribada e preparo das terras para o cultivo dos cereais, tomando posse de extensas terras. Atraiu parentes e amigos, e iniciou o devassamento dos arredores. Em poucos anos nasceria a paróquia de Sao João de Caratinga.
Adiante, rumo ao Leste, no vale do Manhuaçu, estavam os botocudos e remanescentes de aimorés. Permaneceria até nosso tempo a denominação de Ponte de Aldeia, núcleo provável de indígenas. Por aquelas paragens penetraria, abrindo um picadão, Duarte Carneiro, procedente do Espírito Santo, e que levantou na divisa do município com o referido Estado uma localidade, Quartel do Príncipe, em homenagem, segundo a tradição local, ao nascimento de Pedro II.
As matas, à esquerda e à direita do rio Doce, foram pouco a pouco recebendo os posseiros, atraídos pela fertilidade da terra. Segundo as crônicas locais, Aimorés, ponto extremo do norte da mata, originou-se de rancho de tropas. Na confluência do Doce e do Manhuaçu, trajeto entre Figueira, hoje Governador Valadares, e o Porto de Vitória, alinharam-se algumas casinhas acompanhando o caminho irregular das tropas.
Embora brasileiros de nascimento, pouco sabiam da língua portuguesa os descendentes de alemães que se fixaram às margens de dois córregos – o do Santo Antônio e do Juazeiro – formando uma comunidade própria.
Procediam do Espírito Santo, e edificaram casas com o estilo das construções rurais alemãs, cobertas de telhas, com oitões altos e janelas e portas azuladas.
A incorporação do gentio à vida do adventicio processa-se no curso do século XIX. Após a construção da Estrada de Ferro Vitória – Minas, intensifica-se a ação de catequese dos missionários do rio Suaçuí. E o desbravamento do vale pela parte baixa só se fez nos começos do Novecentos..
V
TROPAS E TROPEIROS
Os TROPEIROS NA MATA são os mesmos do Centro e do Sertão. Gente indômita a cruzar os caminhos pelo Pomba, pelo G1ória, pelo Doce e Manhuaçu, No período minerador, transportavam o ouro ao litoral, regressando com mercadorias de toda a espécie. Revela o movimento nos portos fiscais que a capitania produzia apenas 10% das necessidades de seus habitantes. Tudo se resumia na exploração aurífera, dependendo pois dos muares a sustentação da indústria extrativa.
Posteriormente, com o retorno à lavoura, interligaram-se por todo o território. Em suas caminhadas. percorriam o Centro e o Sul, o Sertão e o Leste. E apesar das ferrovias, construídas selvas a dentro, muitas regiões, ate a década de quarenta de nosso século, contavam com um único transporte – a tropa. As bestas de cangalhas, as mulas de cargas percorriam léguas e léguas, vadeavam os rios, arranchavam nos caminhos. Palmilhando as veredas que os índios abriram em séculos de vida agreste, o tropeiro violava a mataria, travando conhecimento com os lavradores que ermavam nas solidões. 0 terçado desbastava a pi- cada, deixando o sinal de passagem nas clareiras. 0 casco da alimária transformava os caminhos, o rumo da récua baixava o nível do trilho, alterando-o em valo. Crescia a lama, nela se atolavam as bestas carregadas. 0 pântano estendia-se, às vezes, interminável. Precários os trilhos, mal traçados, mal construídos, pois abertos a golpes de foice. Mas o destino, estradado pelo esforço, pelo conhecimento da terra, pela prática, tornar-se-ia afinal em estrada carroçável.
0 litoral era geralmente o retorno, com transporte de ervas medicinais e gado para o Caminho Novo ou para o Leste, atravessando a vau o Piranga e o Casca a fim de ganhar-se o território capixaba. Pelo Muriaé e pelo Pomba, atingem, por mil atalhos, o Paraíba, no lado fluminense.
No lombo das tropas, a Mata encaminha o açúcar, o fumo, o toucinho e o milho. Recebe na volta o sal de Magé. Em regresso, no arsenal, havia também armas e munições, botas e ferramentas para os homens. As sinhás encontravam veludo e seda, botinas de duraque e artigos de luxo. Ademais, havia algodão em tecido, o chá, bugigangas e mercadorias do Rio e Campos.
As tropas eram constituídas por mus, burros sobretudo. Formavam-se por lotes, cada um composto de 12 animais, inclusive a madrinha. À frente, caminhava o burro da guia. Era um muar ensinado, sem pose e cheio de cincerros a dindilhar e um número maior de guizos. A ele dirigia-se o tocador, aos gritos, orientando e ordenando. Seguia-lhe a madrinha, a égua vistosa, carregando cincerro silencioso, cujo toque só se fazia ouvir quando nas pastagens a tropa tinha outra vez de reunir-se para a caminhada.
A madrinha não era necessariamente a égua, mas os tropeiros a preferiam, por a considerarem mais respeitada pelos burros. 106 Marchava-lhe após o burro contra guia. Depois, em fila, os animais carregados.
A tropa mantinha a hierarquia das bestas e dos homens. 0 tropeiro raramente lhe seguia a caminhada. Era o dono, o patrão, e prendia-se a afazeres que o atrasavam ou o adiantavam. Quando acompanhava a tropa, pouco interferia na ordem. 0 comando pertencia, na prática, ao arrieiro. Sempre junto, montado em animal de sela, à frente ou na retaguarda, acompanha a passo o movimento dos homens e das bestas. 0 arrieiro era pessoa entendida em caminhos, animais, courama, veterinária e medicina. Sabia cortar crina, tirar travagem, e sua versatilidade no governo da tropa assemelhava-se à do comandante do barco em mar revolto. Entendia-se com o tocador, dava-1he ordens e com ele trocava as impressões para descobrir um roteiro ou escolher uma clareira.
Os burros eram amansados para a rude tarefa. Mister a resistência ao peso para as jornadas nas zonas mateiras, acidentadas e montanhosas. Longos e irregulares os percursos, subentendiam a jornada de pelo menos trinta quilômetros, suportando os animais, na maioria das vezes, a carga aproximada de quinze quilos. Impressionou-se Eschwege com o vigor dos muares, observando que julgara impossível, não raras vezes, atravessassem pântanos ou subissem e descessem escarpados rochedos. "A força de seus pulmões deve ser tão extraordinária quanto a de seus nervos e músculos, porque subiram a alta montanha de Mato Grosso (perto de Angra dos Reis), que avaliei ter no mínimo três mil pés de altura, em hora e meia, e isto continuamente em passo acelerado." 107
A tropa era preparada com cuidado por gente prática, porque cumpria não forçar a alimária, não exigir o mínimo além de suas forças. Rigorosa era a disciplina. Um conjunto de cuidados, tratamento das cavalgaduras, precaução com as ervas venenosas, alem do zelo com a carga e valores.
Os tropeiros conheciam perfeitamente as rotinas para aproveitar, da melhor forma possível, o esforço da ramagem. Inúmeras rotas, de grande fôlego, foram por eles percorridas a passo, e várias são na Mata as aldeias nascidas das paradas para repouso.
Eram facilmente reconhecidos pelas atitudes e vestuário. Negros, mulatos e brancos acostumados, desde cedo, a caminhadas longas no regime comedido. Delgados, magros, observou Saint-Hilaire, andavam descalços, com grandes passadas. Coberta a cabeça com um chapéu de pala estreita, de forma bem alta e arredondada, usavam a jaqueta de tecido grosseiro de lã e camisa de algodão, cujas fraldas flutuavam sobre calças do mesmo tecido. Próximos à Mata, em 1819, encontrou-os o cientista. No caminho do rio Preto viu tropas carregadas de mercadorias."Os bois eram enviados à capital pelos mercadores do sudoeste da província mineira, que os compravam nas fazendas. Esses mercadores confiam integralmente a direção de um rebanho de bois e a venda desse gado a homens que se chamam capatazes e que são muito bem pagos. 0 capataz tem sob as suas ordens os boiadeiros, e cada um destes é encarregado de conduzir vinte cabeças; não se obrigam esses animais a caminhar mais de três léguas por dia, mas até o seu destino não se permite que repousem, enquanto é hábito fazer-se caminhar todo o dia e deixar pastar no dia seguinte o gado que se conduz do sertão oriental de Minas à cidade da Bahia." 108
Péssimas as comunicações, mormente na estação das chuvas, não se detinha senão para o descanso. Afonso Arinos deixou-nos numa de suas paginas a descrição do burburinho da parada. "As sobrecargas e os arrochos, os bugais, a penca de ferraduras, espalhadas aos montes; o surrão do ferramento aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados, as bruacas abertas e o trem-de-cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho",109 denunciavam ao arrieiro que a descarga estava feita com a ordem do costume. Durante o repouso fazia-se a refeição. 0 cozinheiro, figura indispensável da tropa, punha-se ao trabalho, escolhendo o local para armar a trempe. "0 caldeirão preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca chiava no espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo, lançava às vasilhas olhares ávidos e cheios de angústia na ansiosa expectativa do jantar."110
A dieta do tropeiro pouco variava. Nela entrava necessariamente o feijão, seguido de farinha de mandioca, do toucinho, da carne-seca e do café. A carne-seca supria a falta de sal, de preço elevado, e da carne fresca. "Impunha-se a adoção duma dieta simples e nutriente. Nada melhor que o feijão substancioso, o toucinho salgado, para os chorumentos torresmos, a farinha de mandioca, para a gostosa farofa, a carne-de-sol, frita ou assada, e a couve picada.
E tome pimenta"111
A partida exigia uma série de providências e cautelas. "De madrugada, ia o camarada com o bornal de milho ou a cuia de sal buscar os animais no pasto ou no encosto, onde haviam sido soltos. Nas primeiras noites, para evitar que ’puxassem para trás’ pelo hábito de voltarem às suas querências, ficariam peados, quando o campo não fosse fechado ou seguro. No fim de dois ou três dias, alongando-se a viagem, amadrinhavam-se em torno do cincerro e assim o campeiro via sua missão facilitada." 112
0 rancho é uma dádiva da tropa. Lá, onde se detinha para bivacar, o tropeiro encontrava o abrigo para a dormida, o lugar da refeição frugal, o ferrador, às vezes entendido em animais, espécie de alveitar ou veterinário. Era o pouso. Consistia, segundo a descrição de Saint-Hilaire, num longo telheiro coberto, tendo à frente, por vezes, a varanda e portas de madeira ou pilastras de tijolos. Luccock descreveu-os na província do Rio de Janeiro no primeiro quartel do século passado.113
Media o rancho pouco menos de 5 mil pés quadrados. Os burros iam chegando; após a descarga, os volumes maiores e menores eram arranjados cuidadosamente. As cangalhas também se arrumavam lá fora, uma por cima da outra, mas em ordem. As cilhas, dependuradas, tudo disposto, em suma, de modo que se pudesse encontrar com facilidade. Além da fileira de cangalhas, punha-se a lenha e fazia-se o fogo. Era cozinha provisória. Descarregados os animais, juntado o feijão com torresmo e farinha, seguia-se a sobremesa de rapadura com melado e café fumegante servido em cuité.
Só então as violas começavam:
Maria, por caridade,
Não ama tropeiro, não.
Tropeiro é home bruto,
Bicho sem combinação.
Maria, escute o conselho,
Sossega seu coração.114
Na madrugada, aparelhada a tropa, o tocador puxava a madrinha para a frente, e ao cabo de algumas horas novamente se encaminhava para as trilhas em busca de seu destino. Andava metade do percurso até o meio-dia e pela tarde até o crepúsculo, completando a média de cinco léguas. Para o repouso, desarreavam à beira de uma aguada, quando as energias eram outra vez refeitas.
As povoações ou pequenos núcleos recebiam-na com alvoroço. Ao bimbilhar dos guizos e dindilhar dos cincerros, "as moças e os curiosos corriam para as janelas, a ver passar a comitiva, que avante desfilava, sacudindo em trote batido as canastras de couro tacheadas de latão."115
0 tropeiro desempenhou na Mata papel complexo de bandeirante, mercador, conselheiro e capitalista. Em regra, participava da elite da província. 0 negócio exigia, para o bom êxito, recursos e instrução, tino e boas relações. A circunstância do meio de vida possibilitava a imagem de homem bem informado que, em suas andanças, conhecia todo o Pais. Passava naturalmente a conselheiro dos lavradores, pessoa de confiança para as compras na Corte. Era um mensageiro da civilização, no dizer de Calógeras. No tempo em que raros jornais circulavam, a tradição oral valia por meio quase único de contato com os acontecimentos do litoral. Coisa muito semelhante ao papel que, na Idade Media, desempenhavam mercadores ambulantes ou os trovadores. 116
VI
A PAISAGEM DO SERTÃO
A EXPLORAÇÃO DOS RECURSOS naturais seria a providência dos primeiros chegados, o único modo de sobreviver. A forma de ocupação do solo implicava aproveitamento de todos os expedientes utilizados pelos indígenas.
Indicam as pesquisas que os conquistadores tiveram de habituar-se aos meios materiais dos primitivos moradores da terra. Tinham eles tido o tempo e oportunidade para arrancar da natureza o máximo de recursos, e os colonos os adotaram a fim de aproveitar o mundo animal e vegetal.
Os estudos sobre os expedientes de pesca inventados pelos selvagens, as habilidades no manejo dos instrumentos, a capacidade de cálculo e previsão na caça, a medicina e a magia, bem como a incorporação das entidades míticas ao catolicismo, tudo nos convence de uma estreita relação entre os nossos índios e o homem do Interior.
Nos primeiros tempos nada se acrescentou às veredas, aos atalhos, e o sistema de viação existente foi o auxiliar necessário. Prática do gentio para marcar os caminhos, processos de sinalização convencional, enfim toda a experiência selvagem foi avaramente aproveitada pelo adventício. 0 perfilhar pelos íncolas da técnica importada favoreceria posteriormente a interação.
Os elementos são, pois, de duas procedências. 0 sertanista alcança a floresta, dispondo de acervo de conhecimentos obtidos no meio adiantado de sua origem. Mas o indígena era sabedor de segredos da natureza, que acabaram por incorporar-se àquele conhecimento. Efetuam-se as acomodações, repetindo-se na Mata o processo normal de ajustamento de colonizadores ao meio físico.117 0 casal Agassiz descreveria a maneira original de caça nos arredores de Juiz de Fora nos meados do século passado. Quando a floresta é muito densa, contam-nos, espalha-se a comida numa clareira para os animais silvestres, e erguem-se tapumes disfarçados pela vegetação, onde se deixam orifícios para observação do que se passa; o caçador, escondido por trás desses biombos de folhagem, fica à espreita durante horas até que a paca, o porco-do-mato e a capivara se aproximem para comer. As senhoras se apeiam e esperam pelo fim da caçada deitadas num desses frescos recessos da mata.
A moradia dos primeiros tempos, simples rancho de palha coberto de folhas de palmito com paredes de pau-bambu, é simples pouso, provisório e precário. Pa1hoças miseráveis semelhantes às encontradas por Mawe próximo a São Paulo. Mas, quando o adventício afortunado chegava com rebanho e escravos, melhor construção de pedra erguia-se na clareira aberta para a sede. A Fazenda do Dutrão, de cujas ruínas tirou Funchal Garcia o estudo para um quadro magnifico, levantava-se na encosta da serra do Capara6. 0 casarão dispunha de dezenas de cômodos, assentado sobre grossas colunas de madeira.118 Já outra, a Fazenda do Rochedo, ergueu-se imponente em Cataguases. 0 conjunto arquitetônico, de linhas severas, obedecia ao estilo colonial português. A obra consumiu dez anos de trabalho ininterrupto. Carapinas e marceneiros prepararam a confecções dos móveis; os serviços de estuque e pintura a óleo exigiram oficiais trazidos de longe. Também as esquadrias de portas e janelas e as obras de cantaria, à entrada do solar, incluindo escadas e pilastras, requereram canteiros possivelmente portugueses.119
Nos sertões, o equilíbrio da sociedade rústica e do meio vincula-se, desde os primeiros tempos, à economia natural.
Um imperativo a que não podia escapar o deserdado foragido das Gerais. 0 sistema, apoiado na economia fechada, condicionava usos e costumes e ainda o c6digo de moral agrário, constitutivos de uma cultura patriarcal. A fazenda, núcleo formador do sistema, com a sua auto-suficiência econômica. Algumas ainda permaneceram até a década de trinta. Construção de pau-a-pique ou taipa, no mínimo com meia dúzia de janelas. A maioria, assobradada, dispondo de varanda. A ilharga, o engenho de moer cana, e junto o alambique para o melado. Adiante, a estrebaria e o curral. Ao redor da sede, as hortas, onde animais domésticos se misturavam às galinhas e porcos. Distante, a lavoura.
Há duas gerações de fazendeiros na Mata. A primeira, anterior ao plantio do café, sucede ao pioneiro. Traz em seu temperamento e modo de viver os costumes de recolhimento habituais nas Minas. Mantivera uma civilização, diferente da litorânea, plasmando o comportamento na angústia de barroco serôdio. As tipicidades da província disso nasceriam. A diversidade mineira seria resultante da exploração aurífera, de natureza econômica e social diversa das atividades agrarias do Nordeste e do Sul.
Essa gente rebelde e democrática, findo o período de mineração, desce pelo Caminho Novo em direção à Mata Mineira e terras fluminenses. Partira para o litoral, retornando às atividades agrárias.
0 fazendeiro seria, nos primeiros tempos, o homem das Gerais. 0 prolongamento da sua terra seria o Leste. Mas a condição de atraso, o sistema primitivo de comunicação tornaram-no rústico. Montado no cavalo inseparável, vem ele pelas picadas ao arraial, contrafeito quase sempre. Seu clima, o da roça, torna-o taciturno e introvertido. De botas e esporas, perambula pela lavoura entre os negros e caboclos. Acorda na madrugada, quando as estrelas ainda não fugiram, assiste no curral à ordenha das vacas, tomando na caneca o copo de leite cru. Cedo, o almoço, às dez aproximadamente, e ao redor da mesa o patriarca impera. De grandes barbas, inspira à filharada o respeito próximo ao temor, à mulher o olhar submisso. No começo da tarde, após a sesta, desce outra vez a escadaria do casarão e perambula pelos arredores, pelas plantações mais pr6ximas, feitorando o cultivo, vigiando a colheita, indagando e dando ordens.120
Reúne um ror de conhecimentos práticos, aprendidos na vida, com índios e negros, com pretas e tropeiros. Atende às emergências dos escravos tratando-1hes as feridas, cuja gravidade ainda não exige a atenção do curandeiro. Conhece algumas bençãos e rezas, e contrito, cabeça baixa, inspira nos acudidos a confiança necessária. Em agricultura liga a pratica aos conhecimentos dos escravos e índios. Adota superstições diversas, teme os espíritos, mas na capela se curva como cristão em rezas usuais. Procede das Minas em decadência. Descera da região barroca, onde o luxo e a riqueza desapareceram nos finais do século XVIII. Sem experiência suficiente de cultivo, em busca de terras, invadiu a mata pelos vales, fixando-se em fazendas com lavouras de subsistência.
A plantação de café modificá-lo-ia. Deslocara-se do vale direito do Paraíba na segunda metade do século passado. Os primeiros grupos começaram a chegar pelos afluentes. Filhos e netos de mineiros regressavam à província materna. 0 latifúndio exaurira o solo fluminense e avançava, tragando novas terras com negro e café. A gente que entra povoa os vazios, misturando o litoral como o barroco já quase delido num rústico genuíno.
Deu-nos ainda Agassiz – em sua viagem ao Brasil – a que já nos referimos, esboço de vida rural nos arredores de Juiz de Fora. Emprestava-1he o rústico, pelo menos nas ocasiões excepcionais de festa, a impressão fascinante de medievalismo. Era a idéia que lhe ocorria quando reunido para o jantar "na vasta sala mal iluminada em que uma longa mesa, vergando ao peso de peças de caças e grandes quartos de carnes, estava sempre servida para uma massa heterogênea de convivas". Na extremidade superior sentava-se a família com os comensais ordinários; mais para baixo, com os seus, o administrador. Durante o jantar, entravam convidados inesperados, sem cerimonia, à noite ou muito cedo (o costume é deitar cedo e cedo acordar) . 121
As gerações da Mata ainda guardavam tradições dos velhos pioneiros, mas se adaptaram facilmente à lavoura cafeeira. De braços abertos, recebe a novidade. Os cafezais vindos do litoral imprimem um sentido político conservador. Mas a Corte distante e o tempo de paz que o Regresso fizera descer sobre o País, ensejavam a relativa calmaria. Do convívio nasceria novo tipo, na mistura de virtudes e defeitos. Do rústico ao sofisticado, do liberalismo chimango ao conservantismo contrafeito.
Mais tarde, nos finais do século passado, a estrada. de ferro modificaria o fazendeiro. Não sem luta, na verdade. Nas proximidades de São Mateus, afluente do Carangola no município do mesmo nome, o Coronel Pereira levantou barricadas contra a maquina infernal que lhe atravessaria a fazenda.
Mas num instante o litoral aproxima-se, o transporte de café se facilita, seu beneficiamento processa-se nas ruas próximas à estação. A segunda geração de fazendeiros disporia de meios para o abandono de longas e fatigantes caminhadas pelos picadões. Toma-se o trem da Leopoldina para viagens ate a Corte. 0 velho fazendeiro contrata a professora na cidade ou envia o filho, futuro doutor, à escola. A segunda geração ganha um verniz diferente.
A vida na fazenda, em seus primeiros tempos, desenvolveu sentido fortemente paternalista. A lavoura permitia dispor de relações que estreitavam os laços familiares. Os filhos atiravam-se à faina e o trabalho de todos atenuava a brutalidade do sistema.
Singular o tipo de regime patriarcal dominante. Enquanto vivo, o pai é o chefe incontestável do clã. Morto, sucede-1he a matrona, a viúva, recebendo o bastão para dirigir a família e a fazenda. Autoridade moral e energia maiores, o respeito dos filhos e genros oferecido sem contestação. Às vezes, a matrona revela o ânimo necessário para enfrentar as contingências ásperas da vida. Decide sem piedade acerca do destino de desafetos e age com masculina fleuma diante dos problemas do sertão.
Na casa, as mulheres imperam. A dona feitora o trabalho na cozinha. Um contista descreveu-nos assim a vida doméstica: "Pela manhã reúnem-se os camaradas para beber café. Ordens, o patrão as dá, nessa hora. Naqueles bancos e banquinhas, assentam-se as visitas, gente sem cerimonia, considerada de casa. A patroa tem a sua banquinha reservada de remendar. Almoça- se, janta-se, cada um tirando o que 1he apetece nas panelas fumegantes. A noite não falta ninguém. Em torno contam-se histórias, fala-se de política, do tempo, das guerras que andam lá por fora, enquanto se bebe café. Isso até a hora do leite, a escolher, com angu ou farinha. Parece grande fornada essa cozinha. 0 fogão, a trempe de sabão, tudo queimando lenha, entra ano, sai ano, reveste as paredes, os portais, as portas inteiriças, o telhado, uma grossa camada de negro picumã. Do que não escapa o longo varal de bambu, sempre repleto de cheirosas lingüiças, de entrecostos e apetitosos lanhos de toucinhos. Debaixo das mesas, no meio da linha, os cães dormem, rosnando às pulgas"122
A tradição conserva as reminiscências de práticas rudimentares. A economia fechada isolava as criaturas num circulo de usos rotineiros e quase primitivos. Apenas a reza aos domingos, no arraial mais próximo, possibilitava algum convívio de vizinhança.
Fundado em depoimentos de velhos moradores, assim resumiu Ferreira de Resende a vida dos primeiros entrantes do antigo arraial de Feijão Cru, hoje Leopoldina. A descrição revela-nos as condições rudes e difíceis com que se defrontavam. "Nos começos o que unicamente se procurava era apenas viver e ao mesmo tempo ir arranjando os cômodos para tudo. Tudo consistia em plantar o mantimento para o consumo diário e algodão para a confecção das roupas. Pouco a pouco as coisas foram melhorando. Aumentou- se o rebanho suíno, sobrando alguns cevados para exportar a outras regiões. A poaia constituía então o bom negócio e era remetida pelos tropeiros a São Fidélis."123
A vida rural imprimia aos hábitos e costumes um toque de brutalidade e violência. 0 enterro na roça é um exemplo de tal vicissitude. Reúnem-se todos ao redor do corpo estendido, aguardando a hora do funeral. Enquanto se escoa o tempo, a cachaça é distribuída. A comitiva parte enfim pelo caminho, homens e mulheres, rumo ao cemitério distante.
A longa caminhada acaba quebrando o constrangimento, e tem início a conversa, em geral a propósito do morto. Reclama-se contra o peso do esquife. Aparece a primeira venda e o cortejo estanca. Os acompanhantes pedem pinga e repousam. Camilo Soares assim retrata o costume: "0 caixão foi jogado para um lado da estrada, sem mais considerações. E os acompanhantes, sem mais cuidados, caíram na rosca seca e na cachaça. Uns se assentaram na porta do botequim vagabundo e sujo, outros se estiraram debaixo de uma coberta próxima."124 Da bebida não escapa o finado. Abre-se o ataúde e a aguardente é pingada em sua boca. Em Ermida, descreve Camilo Soares: "E todo o mundo gargalhava, satisfeito. Um se aproximou do caixão, com cachaça esguichada da boca do ofertante. Era bárbaro, não havia duvida, mas era um velho cerimonial irrevogável. E tinha sua significação. Negro bebeu cachaça a vida toda, deve beber depois de morto."125
Prosseguindo a caminhada, crescem as reclamações. 0 cadáver esta pesado demais, ora porque os pecados somam, ora de saudades da vida. E resolve-se parar para a cerimonia. Escolhe-se a vara, destampa-se a caixa, e um dos presentes se encarrega de bater no defunto.
Os homens apegavam-se a rígido sistema patriarcal, exacerbado pela solidão. Esquivos, lacônicos e brutos, características também ressaltadas por Antônio Cândido em suas observações sobre a cultura caipira na região paulista do rio Bonito.126
Entretanto, consideremos as diversidades entre os mineiros da Mata e os paulistas do Vale do Paraíba. Os últimos conservaram os caracteres agrestes do bandeirante. Grosseiros, presunçosos e vingativos. Já o mineiro foge a tais características. Descreve-o Saint-Hilaire: "Desconfiado, porém amável, rústico, porém hospitaleiro."127 Refere-se, na verdade, o viajante ilustre ao habitante da zona de mineração. Mas justamente tal cultura é que se desloca para a mata a partir do século XVI I I.
Os fatores sociais e econômicos, entretanto, impostos pela economia, alteraram as primitivas características do habitante das Gerais transferido para a agricultura. Tornaram-no um rústico dos Sertões.
Os recursos alimentares, distribuídos ao redor da sede, consistiam principalmente em mandioca, milho e feijão. A carne era de boi e de porco, além de galinhas e animais selvagens. A paca era caçada nos próprios capoeirões vizinhos à roça e preparada à moda do sertão com feijão e fubá de milho. 0 trivial mineiro, numa fazenda da mata, na segunda metade do século passado, é referido por Carmo Gama. Feijão com angu e torresmo, lombo de porco assado, lingüiça, couve e farinha de milho. Aos domingos, a galinha, e sobremesa, doce de cidra com queijo ralado ou o melado com farinha ou aipim. Depois do jantar, na varanda, chá, de congonha ou café adoçado com rapadura. 128 Caçavam-se também perdizes, codornas, pacas, tatus, caititus, antas e veados.
0 caipira apoia-se no tutu de feijão, angu com torresmo e na mandioca. A carne de porco em pedaços acompanha o prato em mistura – a panelada – com pimenta e couve. Havia versatilidade no uso do milho, cozido ou assado, servindo para mingau de milho verde, usado para bolos. E ainda o fubá, para broas, bolos, além do acompanhamento para o feijão e angu.
Toda a base alimentar procedia da região mineradora, sem direta influência indígena. Esta limitou-se a frutos silvestres e ervas, sobretudo as medicinais.
Outros alimentos possibilitavam a variedade no próprio trivial. Abóboras, batata-doce e principalmente o cará. 0 último, substituto do pão, era selvático às margens dos rios e riachos.
Acrescentem-se o leite e o peixe de água doce e o estimulante da aguardente, esta ultima introduzida pelos faiscadores do século XVIII.
As frutas eram silvestres, manga em abundância, destacando-se a jabuticaba, goiabas vermelhas e brancas. Na mesa do escravo havia o feijão, o angu, a farinha, o toucinho e a jacuba.
As diversas atividades econômicas criavam relações de vizinhança a solucionar problemas comuns. Uma delas é o mutirão, que consiste no chamado de vizinhos para realizar determinado trabalho. A atividade tanto pode ser derrubada ou roçada, quanto co1heita ou qualquer obra. Não há paga qualquer, senão compromisso moral de retribuição, quando necessário. Trata-se de elemento que compõe o quadro em pleno sertão, de uma unidade estrutural e funcional das fazendas e sítios vizinhos.
0 esforço vicinal reveste-se de aspectos próprios. Encerra sentido ético e lúdico. Pois geralmente o beneficiado oferece aos vizinhos alimento, festa e gratidão. Nas Reminiscências de Jacuí 129 descreve-se modalidade de adjutório semelhante ao mutirão da Mata. Na Fazenda preparam-se assados, biscoitos e bolos. No dia aprazado, cedo, todos se reúnem para o eito. Às nove chegam as mulheres com os caldeirões, gamelas e sacos de farinha, chaleiras de café e aguardente. Após o repasto, recomeça o trabalho até o café com biscoito do meio-dia. Afinal, ao por-do-sol, findo o serviço, dirigem-se para a sede, onde o lauto jantar é servido. Depois, pela noite e madrugada, vem o cateretê.
Talvez seja o mutirão, na mata rústica do século passado, o elemento mais importante da sociabilidade.
VII
A PROPRIEDADE RURAL
A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA no Brasil assentaria os seus alicerces no aproveitamento agrícola das terras, fazendo uso de experiência de agricultura tropical, adquirida nas ilhas do Atlântico. Diferentemente dos espanhóis, que fundavam os seus processos colonizantes na indústria extrativa de metais preciosos, recorriam os lusitanos a meios que pudessem cobrir os gastos de defesa dos novos territórios. Pelo sistema, não estaria a Metrópole sujeita às despesas de novas expedições. Ademais, não se privando do domínio direto do território, obtinha, em virtude da posse pelos donatários, contínuo rendimento.
Por meio da sesmaria procura-se ocupar o solo de forma permanente, e ela encontra no açúcar o seu destino econômico, tornando-se com o engenho a unidade produtora da colônia.130 Outro caminho não seria possível no tocante à ocupação, pois tudo decorria da falta de recursos da pequena população reinol, enfim, da contingência histórica de organizar a colonização de modo comercial. Houve realmente deliberado desígnio de organizar a exploração da terra, assentada a economia sobre a lavoura açucareira e seu aproveitamento industrial.
Dar de sesmaria terras ribeirinhas, o mais próximo possível das vias, a pessoas com posses para estabelecer engenhos, assinalando-se-1hes para isso um certo prazo, rezaria o Regimento Interno do Governador-Geral. Outras recomendações põem em relevo os objetivos mercantis da colonização, entre eles, a obrigação que cabia ao senhor de engenho de moer canas dos lavradores vizinhos que não dispusessem de engenho, ao menos seis meses ao ano, em troca recebendo certa porção de cana.131
Talvez em virtude da natureza capitalista da colonização portuguesa, circunstância que lhe era fixada pelo mercado externo, propendia o crescimento da economia nacional a exprimir-se em extensão, sempre significando ocupação de novas terras. Mas é toda a política econômica posterior à atividade extrativa dos primeiros tempos que daria origem ao latifúndio brasileiro. De nada valera a preocupação metropolitana em orientar a colonização no sentido democrático. Não se dará à concessão a amplitude que está no pensamento da Coroa e que transparece, por exemplo, no foral da Capitania de São Paulo, outorgado a Martim Afonso de Sousa, no qual se lhe concedia a faculdade de dar todas as terras de sua capitania em sesmarias a qualquer pessoa de qualidade, contanto que fosse livremente cristã.
Torna-se sem eficácia, na prática, o preceito das Ordenações, segundo o qual as doações de sesmarias deveriam ser limitadas à capacidade de exploração de cada concessionário, de modo que não se "dessem maiores terras a uma pessoa que razoavelmente parecer que poderão aproveitar."132 A cultura só se prestava para latifúndios. "Já para desbravar e preparar convenientemente o terreno (tarefa custosa neste meio tropical e virgem tão hostil ao homem), tornava-se necessário o esforço reunido de muitos trabalhadores; não era empresa para pequenos proprietários isolados. Isto feito, a plantação, a colheita e o transporte do produto até os engenhos, onde se preparava o açúcar, só se tornavam rendosos quando realizados em grande escala. Nestas circunstâncias, o pequeno produtor não podia subsistir."133
De feito, prevaleceria a política de aquinhoar os homens de posse com doações de extensos territórios, sentido de que Veiga Cabral, em fins do século XVIII, discorrendo sobre o merecimento dos pretendentes de sesmarias no Rio Grande do Sul, nos dá conta, conjeturando que a mente de Sua Majestade dava preferência, entre todas as classes de pessoas, aos lavradores estanciados, cabeças-de-casal, que a flux dispusessem de escravos e gado, para povoar e cultivar os terrenos. Por outro lado, os costumes de alegarem os peticionários ter família constituída, posses bastante, serviços a Sua Majestade ou serem homens de qualidade, provam, com efeito, que os pobres estavam excluídos da posse da terra e que os capitães e os governadores são muito exigentes ao concederem títulos de sesmarias.
Outro fator de fortalecimento da grande propriedade é a bandeira. Seu intento é venatório, ditado pela precisão de capturar os braços indispensáveis à atividade dos engenhos. Desenvolve-se, através dela, o processo emigratório. Posteriormente, quando os objetivos se ligam à fundação de currais, verifica-se idêntico desdobramento do latifúndio. "0 sertanista povoador, por onde vai passando, deixa um curral. Depois, alega esse fato e mais a luta contra o gentio e pede a sesmaria."134
Toda a economia nacional será norteada no sentido de fortalecer a grande exploração rural, que asfixia a pequena propriedade. Antonil observa "que na região dos canaviais os proprietários ficam, desde a primeira safra, tão empenhados em dívidas que, na segunda ou terceira, já se acham perdidos." Oliveira Viana procura enumerar as causas principais. 0 preparo do terreno a reclamar maior número de escravos, a rotação de afolhamentos, que liberta o senhor rural da fadiga da terra, o plantio, a colheita, o transporte dos produtos e a natureza centrifuga do regime pastoril. 0 senhor de engenho mantinha, do mesmo passo, a organização militar, estava apto a enfrentar o selvagem e sobrepujava o pequeno proprietário em lutas armadas. A influência também se fazia sentir na legislação, sempre adversa aos pequenos proprietários.
Daniel de Carvalho contestou os escritores que puseram a agricultura mineira no quadro geral da estrutura agrária do Brasil com os três caracteres fundamentais da grande propriedade, monocultura e trabalho escravo.135 Sustenta que a princípio só tivemos grandes propriedades nos currais do São Francisco e nas zonas de criação do norte de Minas, então sujeitas ao Governo da Bahia. Já os governadores de Minas, com a afluência de pretendentes e o desejo de contestar a todos, eram prudentes nas concessões, e delas sempre constavam as reservas para patrimônio das povoações.136 Não se concedia, ademais, sesmaria alguma sem prévia audiência das Câmaras dos sítios a que pertencessem. Tratava-se de formalidade indispensável, cuja inobservância acarretava a nulidade da mercê.
Finalmente, recorda Daniel de Carvalho que, quanto à área, a Carta Régia de 1 de abril de 1713 ordenou ao Governador de Minas que nas datas de terras "se haja com a parcimônia que pede o grande número de gente, que concorre para as minas e a fertilidade das terras." A Resolução de 15 de março de 1731 a fixaria definitivamente em meia légua em quadra para os moradores do centro, onde houvesse minas ou nos caminhos para elas, e uma légua de testada sobre três de fundo para os do sertão. Esta providência foi confirmada pelas Ordens Régias de 9 de março e 16 de abril de 1744, terminantes na exigência de que não se confirmariam sesmarias excedentes dos limites prescritos.137
A propriedade rural na Mata tem as suas origens nas sesmarias. As primeiras tem inicio no começo do século XVIII, nas proximidades do divisor geográfico Minas-Rio, ou seja, o Paraibuna. Percorrendo a relação cronológica dos concessionários de sesmarias, encontramos Garcia Rodrigues Pais, o contramestre Simão Pereira de Sá, o sertanista Matias Barbosa da Silva, Antônio Araújo, Capitão José de Sousa, Alcaide-Mor Correia Vasques (casado com a filha de Garcia Rodrigues Pais) e outros.138 Das cartas de 1710 a 1822 constam as concedidas a personagens históricas, todas às margens do Caminho Novo.
A distribuição prossegue na segunda metade do século, na região da serra de São Geraldo (vertendo para o Turvo, afluente do Piranga, e as vertentes do Xopotó, afluente do Pomba), a partir de 1768, segundo registra o Arquivo Público Mineiro.139 Nos campos cerrados do sertão, para fazendas de criar gado, já mediam uma légua de testada e três de fundo, no máximo.
Com base, apenas, no número de concessões, não se pode rebater a tese de que a distribuição de terra sempre obedeceu ao critério da grande propriedade. Consideramos que na maioria dos casos a sesmaria servia de trampolim para a ocupação das terras vizinhas. Havia meios de fugir ao rigor das determinações literais da lei. Pois ela propriamente não vedava que se distribuísse mais de uma data ao mesmo sesmeiro. Permitia também que se concedessem sesmas a pessoas da mesma família. E não proibia, ademais, a aquisição de terras próximas. Titular da sesmaria, escreveu Barbosa Lima Sobrinho, era, em geral, o homem influente que sabia como requerer as cartas e possuía força bastante para a obtenção do deferimento. 140
Saint-Hilaire verberava, em sua segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais, o modo de distribuição. Retalhou-se o solo, comentava ele, pelo sistema, cujas concessões só se podiam obter depois de muita formalidade, e a prop6sito das quais era necessário pagar o titulo expedido. "0 rico" – prosseguia – "conhecedor do andamento dos negócios, tinha protetores e podia fazer bons favores; pedia-as para cada membro de sua família e assim alcançava imensa extensão de terras. Alguns indivíduos faziam dos pedidos verdadeira especulação. Começavam um arroteamento no terreno concedido, plantavam um pouco, construíam uma casinhola, vendiam em seguida a sesmaria e obtinham outra. 0 Rei dava terras sem conta nem medida aos homens a quem imaginava dever serviços."141
0 critério ensejava a violência e injustiça, que o cientista anota: "Os pobres, que não podem ter títulos, estabelecem-se nos terrenos que sabem não ter dono. Plantam, constroem pequenas casas, criam galinhas e quando menos esperam, aparece-1hes um homem rico, com o titulo que recebeu na véspera, expulsa-os e aproveita o fruto de seu trabalho."
A Mata não fugiria a tais vicissitudes do devassamento. As grandes propriedades formavam-se a partir das sesmas outorgadas. Em seu livro de reminiscência", registra Ferreira de Resende a formação da fazenda de Manuel José Monteiro de Barros, em Leopoldina. Alcançara o patriarca do clã, procedente da região mineradora, grande número de sesmarias, não só para si e para todos os seus filhos existentes, mas até mesmo para uma filha que ainda não nascera. Assim, quase todo o Pirapetinga grande ficara em poder dos Monteiros de Barros. 142
Em 1822, suspendia-se, pela Resolução de 17 de julho, a concessão de sesmarias. Advém um período sem leis atinentes às terras públicas. E a tolerância enseja a pura ocupação. 0 invasor aprofunda-se na Mata, escolhe o sitio que 1he parece adequado à edificação da morada, prepara o roçado e torna-se o dono incontestável. Para o futuro, nasceriam duvidas e demandas, marcando nos fastos do sertão capítulos de violência e arbítrio.
A Mata foi inteiramente percorrida, fixando-se os posseiros em todo o seu territ6rio. De grande importância, pois, a extinção do regime sesmarial para o seu devassamento e colonização. Deu-se – lembrou Paulo Garcia – "o apogeu da posse que, com o correr do tempo, passou a constituir modo de aquisição do domínio."143 A sesmaria fora o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos. 0 apossamento seria, pelo contrário, "a pequena propriedade agrícola, criada pela necessidade, na ausência de providencia administrativa, sobre a sorte do colono livre e vitoriosamente firmada pela ocupação."144
Na primeira metade do século passado, a 18 de setembro de 1850, promulgar-se-ia a Lei 601. Procurava o diploma legal definir e sistematizar a matéria. Autorizou a revalidação das sesmarias, cujos concessionários não haviam providenciado a formalização da medição. Os posseiros também puderam legitimar as posses havidas após a Resolução de 1822. E ainda vinha a lei reconhecer-1hes domínio sobre a área ocupada, mesmo sem requerimento.
Na Mata, pois, desde os primórdios de seu devassamento e colonização, a grande propriedade latifundiária se consolida. Os municípios formam-se graças à proteção de um fazendeiro, chefe político local, muitas vezes futuro barão.
VIII
CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO E URBANIZAÇÃO
AS ÁREAS PROIBIDAS tornar-se-iam em Mata, após a derrogação dos dispositivos que protegiam o erário do contrabando e descaminho. Das vicissitudes da mineração, em sua decadência, decorreria pois o devassamento. Cinco são as fontes de povoamento.
A primeira, ponta-de-lança dos faiscadores, à cata de ouro e diamantes no Setecentos. Pessoas sem destino, restam deles lendas e resíduos de tentativa malograda. Igualam-se a povoadores isolados, que, segundo Antônio Cândido, não têm história senão à medida que penetram na órbita do povoamento condensado.145 Ainda na mesma categoria há uma gama de aventureiros, na qual sobressaem o poiaeiro, o comprador de peles, o comerciante de gado. 0 trajeto pelo interior não os fixa. São, entretanto, pioneiros, arriscando-se na aventura da penetração.
Em segundo lugar estão as aldeias indígenas. Nelas se incorporam o catequizador, o foragido, o viajante que se torna sedentário.
0 pouso, em seguida, tem origem diversa. Observa Alberto Rangel que "os povoados do interior, se não têm por gênese a maloca, nasceram de pousos dos caminheiros, a ponto de se equidistarem muitos lugarejos pelas distâncias forçadas das dormidas."146 Desenvolvido, tranfez-se em arruamento, local de escambo. Nasce, sempre, de um ponto de tropa, e acaba confundindo-se com os fogos, no curso do tempo.
Há, também, as fazendas. Seja de sesmaria ou de simples apossamento. A segunda foi na Mata a maior fonte de propriedade. Nela se inserem o agregado, com permissão do dono para lavrar e viver, o posseiro, sem titulo porém de fato ocupante, e muitas vezes seu proprietário após o pedido de usucapião.
Por derradeiro, os núcleos deliberadamente fundados. No meado do século XIX, a paisagem se definia. As relações de vizinhança, nascidas entre os agricultores, provocavam a iniciativa da doação para a capela. Em dia determinado reuniam-se para as providências destinadas à edificação. Calculava-se a soma necessária, e cada um se comprometia a contribuir. 0 padroeiro era também escolhido, após as propostas e discussões. Algumas vezes, a deliberação era comunicada à autoridade, especialmente ao prelado diocesano, a quem se solicitava a visita oficial.
Nem sempre a distancia facilitava o agrupamento capaz do custeio. 0 tempo corria, e o construir arrastava-se anos a fio. Vários os exemplos de iniciativa tomada por fazendeiro mais próspero e devoto. Seja como for, ocorre em toda a Mata a reunião de lavradores vizinhos e o levantamento da capela sob a invocação de um santo piedoso. A partir da iniciativa nasce o núcleo, embrião de um povoado.
Estabelecidos pela fé os vínculos de vizinhança pontilhavam, em pouco tempo, casebres irregulares próximos à igreja. Alquando surge a rancharia no percurso das tropas. São as clareiras, abertas no esforço de uma agricultura destinada ao comércio com os arrieiros.
Um dia estaca a tropa, para o descanso. Do pouso transitório, surgido de interesse contingente, nasce o núcleo. A estalagem improvisada permanece, após a retirada.. Outros viageiros chegam, encontram gente, estanciam. A venda mostra-se, e aos domingos os lavradores reúnem-se para a reza e conversa. 0 compadrio completa o quadro social da aldeia nascente.
A estalagem atrai o ferreiro, consolida o negócio da venda. Arria a mochila, campeando, o mascate, que ali pega do negócio definitivo, antes carecedor de andança e canseira. A rancharia começa de atrair os interesses das lavouras vizinhas. Um centro de pousada, com gente afoita e vivida. Afinal, vira rua de feira franca, movimentada e, em pouco tempo, ganha trepidação e gente nova. Estende-se o arruado, acompanhando o ribeirão. Cresce o arraial.
Próximo ao Caminho Novo, alguns povoados se adensam no curso da primeira metade do Novecentos. 0 êxodo das minas faz crescer os pontos esparsos. Mawe, então, visitaria Juiz de Fora. Saint-Hilaire descreve a fazenda pouco depois, e Alexandre Caldoleug esclarece, em 1821, que a sede do município era um lugarejo com duas ou três choças. Entretanto, a passagem de tropas e de gente com destino as fazendas fluminenses dava àqueles sítios um movimento constante. Proporcionava a colocação do sobejo das lavouras na rota de um comércio sempre crescente. Em 1836 o Governo da Província encarregaria Henrique Halfeld de construir a estrada do Paraibuna. 0 engenheiro aproveitaria o curso do Caminho Novo, retificando em alguns pontos o seu traçado.147 Adotando a nacionalidade brasileira, passou Halfeld a residir em Juiz de Fora, casando-se com uma Tostes, filha do proprietário da fazenda. Com a morte do sogro, herdaria parte da propriedade, cuja divisão se providenciou para a venda de lotes. 0 povoado, que se encontrava no Alto da Boiada, na volta da estrada que rumava ao retiro, foi transferido para a vargem da fazenda. Já havia doações anteriores, de membros de gens Tostes, a Santo Antônio e destinadas à Igreja. A estrada e o loteamento possibilitariam o crescimento do núcleo. Ferreira de Resende conheceu-o pobre e insignificante, simples rancho de tropa.148 Mas em 1853 daria inicio Mariano Procópio à construção da estrada de rodagem, concluída nove anos após. Estabelecia-se, a partir de então, o serviço de diligências e de carroças para o transporte de mercadorias e passageiros a Petrópolis.149 Em 1857 Juiz de Fora já possuía uma agência bancária; e quatro anos depois a Estrada União e Indústria chegava à cidade de Paraibuna. Podia-se, enfim, num dia só, ir à imperial cidade ou ao Porto de Estrela, "e podia-se ir desde então sem lama, sem caldeirões; e quem o quisesse ou pudesse, ao abrigo do sol e da chuva". 150
A cidade cresce na segunda metade do século. A lavoura cafeeira permitiria a acumulação de capitais para o surto industrial. Na década de oitenta, transferindo-se para Juiz de Fora, Bernardo Mascarenhas dá início ao plano e fundação da primeira usina hidrelétrica da América do Sul, Companhia Mineira de Eletricidade. (Fora o pioneiro da indústria têxtil em Minas, montando a Fábrica do Cedro, em Tabuleiro Grande, fazendo aparecer, em 1868, os primeiros metros de tecido de algodão.)151
Enquanto cresciam os povoados às margens do Paraibuna, favorecidos pelo Caminho Novo, rota de êxodo das Minas em decadência, árduo no sertão do Pomba era o processo de urbanização. Primeiramente, catequese e atividade sertanista conjugaram-se para a criação das aldeias. É o período dos heróis. 0 grande fazendeiro tutela o povoado. Protege-o e orienta-1he o progresso. A revelia do surto cafeeiro, dá-se o desenvolvimento da atual cidade do Pomba. Em 1832, para posse da nova vila e levantamento do pelourinho no largo da Alegria, compareceu o ouvidor, Dr. Antônio José Monteiro de Barros.
Ligadas à ação pacificadora de Guido Tomás Marlière, outras povoações também aparecem na primeira metade do século passado. Ele próprio fundaria a de Meia-Pataca, hoje Cataguases, congregando diversos aldeamentos indígenas e três dezenas de fogos de brasileiros. Este é o período rústico da Mata.
Na Fazenda da Glória, próximo ao Pomba, o Major Joaquim Vieira da Silva Pinto, filho de Queluz, ligou-se por casamento à família Resende.152 Antigo comerciante de gado, perlustrou todo o sertão de Minas, fixando-se, afinal, em 1842, convizinho à povoação de Meia-Pataca. 0 Major benfeitorizou o povoado, elevando-o à categoria de Vila, constituindo a sede do Município, abrangendo as freguesias mais próximas. Seu filho, Coronel José Vieira, estudaria em Congonhas, e ligou-se à outra família da região, casando-se com uma filha do Coronel José Dutra Nicácio, de São João Nepomuceno.
Da mesma forma que Juiz de Fora, experimentou Cataguases o surto de desenvolvimento econômico. A lavoura cafeeira facilitaria os recursos para a instalação de estabelecimentos industriais, e até o nosso século chegaram os resultados do progresso, pois do ponto-de-vista cultural Cataguases apresentou singular movimento de renovação literária e artística.153
A presença dos coronéis é comum na vida e no desenvolvimento dos arraiais. Na primeira metade do século passado, por exemplo, o Arraial do Cágado já constituía centro movimentado. Iniciou-se então a campanha dos moradores com duplo objetivo: a criação do município e a mudança do nome. Faziam-se na época os estudos para a reforma administrativa e ordenação toponímica. A sugestão de Custódio Ferreira Leite, Barão de Airuoca, ao governo da Província no sentido de designar o arraial por Vila de Mar de Espanha, foi logo aceita. 0 Barão, grande fazendeiro de café, lançou a sua proteção sobre a comunidade, desenvolvendo os meios de comunicação e tomando as iniciativas para o progresso local.
Não foge à regra a fundação e desenvolvimento de São João Nepomuceno. Proprietário da Roça Grande, o Guarda-Mor Furtado de Mendonça adquiriu terrenos e os doou à Cúria a fim de ser construída a capela. Associando-se a outros fazendeiros, inclusive a Antônio Dutra Nicácio, tomou a iniciativa de patrocinar a construção da igreja e escolher-1he o padroeiro.
Não fosse a debilidade da lavoura cafeeira na Mata, o surto industrial teria alcançado toda a zona. Em São José do Além-Paraiba montam-se algumas fábricas, mercê da iniciativa de José Mercadante, filho de imigrante italiano. Entretanto, à medida que se afunda no Interior, mais difícil se torna a industrialização. Apesar dos esforços, Carangola não conseguiu industrializar-se. Na década de dez, varias iniciativas pareciam prosperar, graças a um pioneiro, Jonas de Faria Castro. 154
IX
A FAZENDA DE CAFÉ
0 CULTIVO DE CAFÉ em Minas Gerais teve inicio pouco após as primeiras safras nos arredores do Rio de Janeiro. Registram as crônicas das últimas décadas do século XVIII que, havendo tráfego diário de Minas Gerais com o Rio por meio do Caminho Novo, que vinha desembocar no Porto de Estrela, mal principiaram a florescer os cafeeiros das chácaras cariocas, levaram os tropeiros e viajantes sementes da rubiácea para os pomares dos mineradores, deixando ainda bagas da planta pelos pousos do caminho.155 Mawe encontra, de 1809 a 1810, na fazenda da Mantiqueira, "cafeeiros antigamente plantados", e observa nas cercanias da Borda do Campo que a geada os atacara.156
Em territ6rio fluminense, porém, é que o café dá prova de vitalidade, motivo por que Oliveira Viana enfatiza a decisiva influência sobre o destino da grande cultura o êxito inicial das primeiras tentativas, principalmente no foco de Resende.157
A propagação origina-se, pois, do Rio de Janeiro em direção às terras do chamado Norte Paulista. Corre contra a corrente do rio Paraíba, alcançando, em pouco tempo, os municípios paulistas de Areias, Bananal, Queluz, São José dos Campos e Jacareí. Foi povoando toda uma área extensa e fértil e, por muito tempo, o vale, em seu trecho paulista, constituiu-se o centro de maior desenvolvimento da lavoura.158
Em outra direção marcham os cafezais ao aproximar-se a primeira metade do século XIX. Cruzam as serras marítimas pelo vale do rio Sant’Ana e ribeirões próximos, chegando ao planalto.
Ocupando os distritos de Vassouras, transpoem o Paraíba na região de Valença, até alcançar os vales do rio Preto e do Paraibuna.159 Assim, via Paraíba, entram pelo vale do Paraibuna a dentro, demandando a zona de Juiz de Fora. As terras de onde as águas vertem, em afluência e confluência, para o Paraíba, na Mata de Minas e na margem fluminense, enchem-se de cafezais. Faz-se junção com as lavouras que haviam avançado, partindo da costa, de São Gonçalo, e seguindo a linha de penetração que demandava as terras de Cantagalo e da Aldeia da Pedra (Itaocara), e mais tarde de Cambuci e São Fidélis.160 Elas tem uma atividade que lembra os centros urbanos do planalto paulista. Mas, ao contrário destes, estão perdidas num vale.
Continham-se então em faixa relativamente estreita, na vertente esquerda do Paraíba. Mas na década de trinta do Oitocentos avançam para Sapucaia e Porto Novo e dominam afinal a Mata mineira. "Assim, as terras limítrofes do Paraíba se povoam de lavouras e mais lavouras, ricas, por vezes, riquíssimas, em Mar de Espanha, Rio Novo, Pomba e Leopoldina. Cada vez a se internarem procuram as cabeceiras dos rios que vertem para o Doce.161 Dos arraiais do Pomba dirigiram-se acima pelo Muriaé, alcançando o Carangola, ultrapassando a serra e atingindo a bacia do Doce pelo Manhuaçu e Manhumirim. A lavoura em expansão eliminava a descontinuidade de povoamento entre o Estado do Rio de Janeiro e Minas Gerais.162
Em 1847-1848, aparecem nos mapas de exportação as primeiras contribuições do sul e do norte da Província. Figuram na relação Paraibuna, Mar de Espanha, Pomba, Porto Novo, Porto Velho do Cunha. Em 1850-1851 prossegue o crescimento, tomando o cultivo grande expansão. A hegemonia continuava com Mar de Espanha, Juiz de Fora e Alem-Paraíba.
Vindo do Rio de Janeiro, passou Gardner, botânico inglês, em 1836, por Mar de Espanha. Visitou a fazenda Barra do Louriçal, pertencente ao Coronel Custódio Leite, Barão do Airuoca. A propriedade já produzia anualmente dez mil arrobas de café. 0 mesmo autor visitaria, a seguir, o irmão do Barão, capitão Francisco Leite Ribeiro, que ficava légua e meia. Nasceram os Leites Ribeiros em São João del-Rei, e vinte anos antes haviam-se fixado naquele local, dedicando-se à agricultura. A zona achava-se então inteiramente coberta de mata, declarou ao botânico o latifundiário, esclarecendo que a produção de sua fazenda atingia anualmente onze mil arrobas de café.
Naqueles sítios o cafeeiro se firmara em definitivo. Gardner encontrara vestígios das tentativas de faiscagem.
Em Cantagalo, que também visitou, registra a presença de alguns mineradores ocupados em batear. Porém o maior artigo já era o café.163
Também o Conde de Castelhau, passando pelo Paraíba do Sul, entrou na Mata, percorrendo a fazenda da Soledade, a três léguas do Paraibuna.164 Abrigava duzentos escravos. Havia sessenta casais deles, com domicílio à parte. As culturas eram café, cana, milho, arroz, algodão, anil, além de pequeno ensaio com chá. Com algodão se fabricavam sacos para exportação de café e vestuário para escravos. A roupa dos pretos era tingida com anil sangue-de-drago. A maquinária de Silva Pinto consistia em pilões imensos movidos por força hidráulica e descascadores movimentados por tração animal. Mulheres e crianças trabalhavam, ora na colheita, ora na operação final de catação e ventilação. 165
Como se vê, as plantações de café desenvolveram-se nas fronteiras da Capitania do Rio de Janeiro e deslocaram-se para Minas e São Paulo. Conjugam-se então condições favoráveis e mão-de-obra abundante para o desenvolvimento da empresa. Altitude e temperatura adequadas, solo fértil. Gente semi-ociosa, originária da região mineradora, ocupada apenas na atividade de economia de subsistência. A fazenda de café permitiria a utilização plena.
Mas sobretudo na terra ela se apoia. As sesmarias e a posse fácil do período que medeia de 1822 a 1850 ensejaram a formação de latifúndios próximos ao porto exportador. Salienta Caio Prado Júnior que em matéria de organização seguiria ela os moldes tradicionais da agricultura do Pais: exploração em larga escala, tipo plantation dos economistas ingleses, fundada na grande propriedade, monocultura trabalhada por escravos, mais tarde substituídos por trabalhadores assalariados. 166
Apresentava, porém, a fazenda de café, grau de capitalização inferior à usina de açúcar, em virtude da condição do equipamento utilizado. Nos grandes estabelecimentos eram complexas as instalações destinadas à limpeza, secagem e beneficiamento do grão.
Os proprietários dispunham de máquinas e terreiros pelo menos cobertos de tijolos. À medida, porém, que se subiam o Gloria e o Muriaé, os equipamentos utilizados pelo produtor não mais alcançam o grau de complexidade das fazendas próximas ao Paraibuna. A secagem, por exemplo, na zona mais interiorizada, fazia-se em terreiro de chão. Na maioria dos lugares, os tanques para receber o grão eram grosseiros. Quanto ao beneficiamento, os lavradores contavam, às vezes, com as máquinas dos compradores da cidade.
A incorporação da Mata ao ciclo do café contribuiu seriamente para o crescimento da produção: no qüinqüênio de 1869 a 1874 já se exporta a media de 165 mil toneladas. No quadro da economia brasileira, aumenta pois o volume físico do produto, cerca de 130%, em menos de trinta anos, subindo o valor em 250%. Permitiam os preços que a produção, baseada no braço escravo, não conflitasse com os seus custos e lentamente se ajustasse ao sistema de parceria no cultivo e colheita dos cafezais. Analisando o período, sustenta Gilberto Paim que tal valorização do trabalho favoreceu a absorção dos altos custos de produção, mas, ao mesmo tempo, forçou a especialização da agricultura, conduzindo a economia a um tipo superior de relações de produção. 167
Ao encontrar na lavoura cafeeira o seu caminho de crescimento, a Mata não fugiria à especialização. Os fazendeiros introduzem medidas de melhoria no sistema. levando o arado à lavoura. Não escaparia também às modificações do regime de trabalho. "Os escravos plantavam" – regista Taunay – "e quando chegavam ao estado de boa produção, eram os cafezais entregues por contratos a famílias nacionais. As famílias tomavam certo numero de cafeeiros, enquanto os proprietários lhes forneciam terras para a lavoura de subsistência."168
A Mata adotava, como o Sul de Minas e a região paulista, o estabelecimento de novas relações de produção, admitindo o trabalho semilivre, a colaborar com o escravo e a cuidar da colheita do grão. A semente do café passou a absorver, de todo, a atividade do fazendeiro.
Carlos Prates examinou-as, no começo do século, salientando que, na cultura do café, se adotava em regra "o sistema de custeio das lavouras", em que tem também o meeiro "o direito de cultivar, para si, cereais no meio dos cafezais".169 Prates chama a atenção para o fato de que o colono dava mais importância à cultura intercalar.
Orlando Valverde sustenta que o mal básico do sistema de meação é que ele agrilhoa o lavrador à empreitada do fazendeiro. "Teoricamente, se tudo corresse bem, ambos deveriam prosperar; mas quando a lavoura vai mal, por um motivo qualquer (más colheitas, superprodução, geada etc.), o fazendeiro tem, geralmente, reservas e créditos suficientes para superar a dificuldade, porém o meeiro é levado à bancarrota e à fome." 170
A economia de subsistência comprometia-se em definitivo, provocando a ruptura do ciclo anterior. Acreditava o fazendeiro bem servir ao próprio interesse, indo buscar nas praças todos os gêneros que outrora produzia, desprezando a própria lavoura ao redor mesmo de sua casa. Cotado a pregos altos, cobria então a rubiácea os gastos mais loucos, e para tal circunstância chamava a atenção João Martins, em 1908, pelas paginas da imprensa carioca.171
Adviria posteriormente o problema da mão-de-obra necessária à expansão da grande lavoura. A solução foi achada quando o Governo se incumbiu dos gastos de imigração. Ficava o fazendeiro apenas obrigado a suportar as despesas do imigrante em seu primeiro ano de atividade, o que era feito por simples favorecimento de uma lavoura de subsistência. A Mata receberia a mão-de-obra estrangeira, constituída de italianos, portugueses e alemães.
Forma-se, com a empresa cafeeira, uma nova classe de empresários. Para a Mata, o emp6rio seria o Rio de Janeiro. Rasgam-se, no ultimo quartel do século, as estradas de ferro ao Interior. Nos últimos anos do Oitocentos, já o ponto final da Leopoldina Railway alcança Carangola.
0 café proporcionara às comunidades o calçamento, a luz elétrica e, finalmente, certa ordem social e política. As cidades progrediram após a especialização da lavoura. Trazia não só a lavoura com renda superior. Em sua escalada, cresceram as comunidades, que receberam me1hor organização administrativa e judiciária. Vieram os doutores para os cargos de magistratura, também atraídos para a solução dos litígios, reduzindo a incidência de disputas violentas. 0 café atraiu também os representantes do comprador, comerciantes de praças adiantadas, que montavam armazéns com maquinas de beneficiamento do grão. Provocavam o crescimento do mercado de trabalho, empregando catadeiras em serviços ligados à atividade já mercantil. Além de que, a referida presença democratiza o financiamento, levando o capital ao pequeno lavrador para o custeio da safra.
Dispondo de experiência de comércio, o empresário de café procurou abranger diversas atividades, desde a aquisição de propriedades territoriais ate o transporte e financiamento do produto.
Desenvolveram-se até alcançar os recursos necessários à organização de estabelecimentos de créditos. Celso Furtado chama a atenção para a circunstância de haverem eles, desde cedo, compreendido a enorme importância que podia ter o governo como instrumento de ação econômica.172 E assim a empresa cafeeira irrompe com a Republica.
X
FESTAS E TRADIÇÕES POPULARES
A MATA É POBRE em tradições. Rápido devassamento e prosperidade de apenas meio século não possibilitaram a formação de festas genuínas. As lendas em curso parecem proceder de três fontes. Com os primeiros habitantes, surgiram as da região mineradora. 0 sentido barroco impregna as histórias do aventureiro. 0 sincretismo acompanharia depois a lavoura de café, e a Mata receberia as versões fluminenses de lendas portuguesas e africanas. Afinal, escassa influência das tribos Iocais, restos de tradição de puris e coroados. Tudo, porem, diluído no quadro de rápido devassamento dos Sertões do Leste. Já as festas populares, originadas na região central, acabaram por fundir-se àquelas que acompanharam o café. Congadas, principalmente, que são autos populares afro-brasileiros, conhecidos em todo o território. As reminiscências africanas de bailados de guerra projetam- se no Pais, trazidas pelos escravos. (Em verdade, nunca existiram no território africano, sendo pois trabalho da escravaria nacional.)173 Outros elementos incorporam-se aos autos, entre eles bailados em homenagem à Rainha Ginga, defensora da soberania de Angola na luta contra os portugueses.
Desde o século XVII realizavam-se congos no Recife, em espetáculos, de coroação dos reis.174 Na zona da mineração, fez-se sentir, de modo permanente, a influência africanizada, circunstância que Dornas Filho realçou.175
Na Mata, durante o século passado, conheceram-se as congadas, e a lavoura cafeeira, trazendo a negraria com o deslocamento do latifúndio, estendeu por quase todas as cidades os autos de motivação africana.
É provável que, de inicio, quando das primeiras plantações nos vales do Pomba e Paraibuna, as festas representassem tradições da região mineradora. Em 1818, no Tijuco, Diamantina, von Martius assistiu a congadas. O Rei Velho entregava a coroa ao Rei Novo, e os escravos manifestavam uma alegria ruidosa.176
A decadência da lavoura cafeeira fez desaparecer, nos últimos cinqüenta anos, a festa nas cidades mineiras da Mata. Antes, realizava-se por toda a parte, desde os vales do Xopotó ao Manhuaçu. Em Visconde do Rio Branco, a 13 de maio, comemoravam a abolição. Preparavam a congada após as solenidades religiosas da capela do Rosário, ruída no Natal de 1898. Os participantes vestiam-se de modo bizarro, dançavam e cantavam, percorrendo as ruas. 0 som dos tambores fazia-se continuo, de tom triste. Ha alguns anos, um curandeiro chamado Dodô reviveu-a no antigo Presidio.177 Em Conceição do Turvo, atual Senador Firmino, também se realizavam as tradicionais danças com coroação, desde os princípios do século XIX.
Em Santa Luzia do Carangola as congadas alcançaram os primeiros anos da década de trinta. Havia bailados, coroação de rei e reminiscências de lutas guerreiras. Ginga, rainha, conduzida em régia procissão até o Largo do Rosário. Dava-se em maio, desfilando os figurantes pelos pátios das povoações mais próximas, como Alvorada e São Manuel do Boi.
Bem semelhante a certo tipo de maracatu, com cortejo coreográfico, manipansos, estandartes, músicos e corte. A escravaria fluminense o trouxera de tradições sudanesas e bantos, com ostentação e luxo. 0 negro Surunganga comandava o préstito.178
Ainda na região dos afluentes esquerdos do Paraíba, em diversas localidades, realizava-se a Folia dos Reis, no dia dos Reis Magos, que consistia na saída dos foliões com instrumentos musicais, enfeitados de fitas de várias cores e acompanhados de um palhaço.
Em Visconde do Rio Branco, no século passado, havia festas e jogos populares com características portuguesas. As cavalhadas, principalmente, por ocasião das festas do Divino. Segundo depoimento de velhos moradores, usavam os figurantes roupas de dragões e eram armados de lanças, sendo os cavalos bem arreados. Trotavam ao som dos tambores. Entre 1900 e 1910 ocorreram os ultimos espetáculos.179
Promovia-se também, na mesma cidade, até 1948, a dança dos caboclinhos, de tradições indígenas. Os participantes vestiam-se de índios, e os bailados característicos. Os instrumentos musicais eram a viola, o reco-reco, caixas e sanfonas. Na região do Pomba e Xopotó é a única tradição que resistiu até nossos dias. 180
As tradições barrocas permaneciam na região. Festas religiosas, sobretudo as de Natal, quando se realizava a dança das Pastorinhas, que cantavam hinos e bailavam, em homenagem ao nascimento de Jesus Cristo, junto aos presépios. Os instrumentos usados eram a flauta e o violão. A última festa deu-se em 1935 em Visconde do Rio Branco.181
No atual município de Senador Firmino, por ocasião dos festejos de Natal, iniciavam-se as festas das Pastorinhas, prolongando-se até 6 de janeiro, dia dos Reis Magos. 0 motivo era a visita ao presépio de Jesus. Os versos cantados festejavam as peripécias dos magos e pastores em busca do Salvador. Alguns recitativos interrompem os cantos. Os três reis vestiam-se com toda a pompa, e os pastores usavam cajados que serviam para marcar o compasso, no assoalho.
Entre os dançarinos figura um padre católico. A musica, acompanhada de viola. Baila-se em casas de família, onde se angaria dinheiro para o Menino Jesus.182
Quando das festas juninas, organizavam-se as danças caipiras, as únicas que resistiram ao processo de transformação dos costumes e tradições populares. Nas quadrilhas tomam parte as moças e rapazes, apresentando trajos característicos. Ornamentam-se os salões, e os terreiros recebem bandeirinhas e enfeites. Por toda a roça, canta-se e dança-se. A fogueira é armada no centro do pátio, e serve-se o quentão, aguardente misturada a rapadura queimada e suco de limão, servida quente em caneco. Canjica e calcanhar-rachado (broa de fubá,) acompanham a bebida.183
A festa inclui, também, o casamento na roça, quando se caricaturam, em forma de crítica social e de costumes, as autoridades municipais, como o delegado, o juiz-de-paz, o padre etc.
Outra festa popular generalizada na Mata foi o boilé, modalidade de bumba-meu-boi. Reis, escravos e índios, em torno da figura de um boi, andam pelas ruas em folguedo. 0 boi, feito de pano, madeira e papelão, animado por duas pessoas encobertas. Em Cataguases, pela tarde, começava a função, numa passeata longa após o almoço, com bebedeiras no local da saída. 0 bicho finge-se de bravo, avança contra as pessoas nas calçadas. Cada participante conduz uma vara de bambu, aproximadamente com 2 metros. De quando em quando, volta- se para trás e batem-se os bambus em ruído cadenciado. Ao retornar à posição, repete a batida com o companheiro da frente. A sincronização empresta ritmo ao cortejo, disposto em duas alas. Vozes, rumpis e atabaques formam o conjunto musical.184
Em Cataguases também se comemorava o nascimento de Cristo em festa ruidosa, o reisado, com bailes e outros divertimentos. As personagens, representantes de figuras sacras, entoavam cânticos de louvor e g1ória ao Menino Jesus. Viola, violão, sanfona, chocalho e triângulo, os instrumentos. 0 cortejo saia em visita às famílias, em homenagem com hinos. Eram recebidos com mesa farta e bebidas. Do Natal ao Dia dos Reis realizavam-se os festejos, havendo peregrinações a fazendas mais próximas.185 Tais comemorações repetiam-se com pequenas variantes, em quase todas as cidades da Mata.
No vale do Doce, aonde o café rumou mais tarde, as festas afro-brasileiras logo desapareceram. Entretanto, a influência indígena fez-se notar. Em Vila do Sacramento, atual Manhuaçu, gente dos pontos afastados vinha à localidade participar da festa dos caboclos.
A dança talvez procedesse de Diamantina, com figurantes vestidos de índios, de plumagem vistosa, executando os passos ao som de flechas, que, presas aos arcos, davam o ritmo, a cadência principal da música. Cantavam em jargão de origem indígena.186
XI
O Coronelismo
A DENOMINAÇÃO DE coronel tem origem no ano de 1831, com a criação da Guarda Nacional. Organização permanente, consistia em destacamentos à disposição de juizes, presidentes provinciais e ministros da Justiça, formados por civis em seções de companhias e legiões. A escolha de oficiais inferiores e cabos era eletiva, sob a presidência do juiz-de-paz; a dos coronéis e majores de legião, pelo governo da Regência. Concediam-se aos oficiais patente com prerrogativas, uniformes e prisão especial em caso de processo. Extinta a denominação, já na República, de tal modo ficaria arraigada na mentalidade sertaneja que até hoje recebem popularmente o tratamento de coronel os que têm em mãos o bastão de comando da política edilícia ou os chefes de partidos de maior influência na comuna, isto é, os mandões dos corrilhos de campanário.187 Alguns autores chegaram a considerá-lo a personificação da unidade política no Brasil.188
O nome, em verdade, pouco importa: o titulo é adotado por circunstâncias que nenhuma relação apresentam com a natural preeminência daquele que era na comunidade o vulto socialmente mais destacado.
O coronelismo seria a transposição para o plano político de um poder privado econômico e social. A liderança e decorrência ou condição do fenômeno. O coronel é o chefe, a quem se obedece, a quem se presta o apoio incondicional. Traça a rota política, decide a manobra, dando as ordens necessárias. Sua atuação desemboca no poder, na escolha do prefeito, dos vereadores, do deputado, do juiz-de-paz. Seu comando alcança a capital, a intimidade do governo, onde sua palavra pesa nas situações. Impõe delegados e subdelegados, seleciona professores, transfere funcionários.
As qualidades pessoais o consagram ou o exaustoram no processo do mando. Alguns elementos explicam-1he a escolha. Maior habilidade, tradição de família, situação econômica. Vários são os motivos, mas, em verdade, o imprescindível é o jeito para a liderança, a habilidade no trato da política.
Em geral, a experiência do poder terratenente incorpora-se à pratica do mandonismo. Trata de ajeitar no plano da comunidade aquela palavra de ordem, ríspida ou suave, atendendo às circunstâncias do momento.
O regime político, em seguida, proporciona a consolidação do seu mandonismo. Dele necessita o poder publico, à vista do processo eleitoral. Dispondo de trato de terra, às vezes extenso, abriga em suas propriedades razoável número de moradores dependentes, camaradas, colonos ou parceiros, meeiros, caipiras, agregados, os quais, no instante das eleições, depositam na urna com obediência os votos em candidato do chefe. Vitor Nunes Leal chama a atenção para a dependência do elemento rural ao fazendeiro, o que explica a contingência de não poder o partido do Governo dispensar o intermédio do dono das terras.189 O eleitorado de cabresto, denominação exata para assinalar a subordinação, comparece à cidade levando no bolso a cédula adrede preparada no pátio da fazenda.
A liderança seria pois resultante do poder econômico e social, considerando-se o tipo de relações mantidas entre o dono das terras e aqueles que nelas vivem. Há, porém, outros casos em que a escolha do coronel deve-se a razoes outras. Seja como for, estende-se, depois, na implicação já de natureza ideológica, aquele prestígio originário a todo o município, aos distritos. Articula-se também a aliança entre os vizinhos e compadres, entre os próprios coronéis e gente da cidade. O comando político termina abrangendo o comportamento do membro do eleitorado, em espécie de acréscimo da ação paternalista com respeito aos dependentes do domínio. O chefe aconselha, protege, pacifica.
No domínio, realmente, poucas vezes dispensa o morador a intervenção do fazendeiro em desavença advinda da vizinhança ou de antipatia natural. Ao consolidar-se o poder coronelístico, a tutela estende-se a todos, pouco importando a situação dos dependentes. Os pobres empregados na labuta de serviços, os meeiros, de melhor situação, colonos e agregados, todos se submetem àquele poder político e social.
O paternalismo, nascido do mandonismo, traz no seu bojo a repressão em suas diferentes modalidades. O poder de policia incorpora-se, como instancia final, à deliberação ou sentença do potentado. É o juiz que decide e executa, de pronto, no arremedo de feudalidade.
Fora de seus domínios, o comando do coronel processa-se de forma atenuada. Sua preocupação é de natureza política e o controle do eleitorado delega-se naturalmente aos correligionários, aos compadres e amigos. Ao sinal menor de rebeldia, de frase dúbia, a ovelha é convocada ao entendimento, quando o coronel recorre aos meios suasórios ou intimidativos. Quantas vezes também não verifica ele a procedência da reclamação e socorre paternal o descontente com palavras de paz e medidas apropriadas.
A situação financeira do proprietário pouco importa no quadro de sua chefia. A posse da terra, o status, dá-lhe a qualidade. Mesmo remediado, nele vê sempre o roceiro o homem abastado.190
Ao redor, gravitam-lhe como satélites pequenos proprietários, sitiantes e arrendatários. O empenho do chefe, a proteção de sua amizade ou mesmo o compadrio indispensável, tornam o amigo mais seguro em sua frágil independência, tornam possível nas horas difíceis o apoio de uma letra, cujo aval muitas vezes o coronel suporta. Outra circunstância que talvez o privilegiasse: a predominância na Mata do elemento rural sobre o urbano.
No cômputo dos votos, pesava o eleitor do campo. Mais uma vez, o poder publico atirava-se sôfrego à conquista do chefe do clã. Este manipulava os cordões de seus amigos e correligionários para fazer face às despesas de transporte, alojamento e repastos, necessários no dia das eleições. O pessoal então vestia-se melhor, e as providências nunca falhavam para que o eleitor chegasse calçado, de gravata e chapéu, à matriz da cidade. Aos magotes caminhavam, acompanhados por um dos "homens" do coronel, espécie de zelador da gente simplória, suscetível de ser envolvida por adversários matreiros.
Na cidade, um ponto escolhido, de preferência um grande quintal, em casa de correligionário, reuniam-se para o almoço. A gente era dividida por seções e marchava cautelosa, preocupada, rigorosamente esclarecida sobre como proceder diante da mesa. "O principio a que obedece toda a técnica é o de preservar o roceiro de qualquer contato com os cabos eleitorais adversários, porque –é a triste verdade – ele geralmente vota com a ultima cédula que lhe é posta na mão."191
Não é justo atribuir ao coronel desinteresse pelos problemas da comunidade. À sua persistência em reivindicar, junto ao chefe estadual, devem-se os melhoramentos urbanos e rurais. Solicita e reclama, requer e telegrafa, nos conciliábulos que precedem as eleições, alinha no papel a aspiração possível. Pela imprensa, quando a tem, martela os ouvidos do presidente de Estado, e se, afortunado, elege o representante junto a Assembléia, reclama por seu intermédio. O seu poder atingia, mercê da política dos governadores, o próprio âmbito federal, e a regra do jogo sempre determinava que as nomeações dos cargos da União, no âmbito dos municípios, lhe fossem também sujeitas à anuência.
E assim aparece este aspecto importantíssimo do coronelismo, que é o sistema da reciprocidade. De um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder das desgraças.192
A predominância do interesse municipal explica, sem duvida, a posição permanentemente situacionista do coronel ou a facilidade com que o Governo do Estado o empolga. Algo a conquistar para o município importa o apoio à situação. Nas hostes oposicionistas, se por exceção ascende um seu representante ao poder no município, terá de enfrentar a negativa de verba ou a presença acintosa do delegado especial remetido com intenções intimidativas.
Ademais, a situação financeira do coronel recalcitrante não é, na maioria dos casos, adequada a desafios impensados. A economia de subsistência, a casa senhorial e a criadagem abundante dão-lhes ares de desembaraço. Mas as necessidades de outros bens, as despesas pessoais com educação dos filhos e vestuário e mesmo recursos necessários para solver compromissos de empréstimos destinados ao setor agrícola, tornam-no também homem vulnerável em reveses de oposição política. Necessita do banco oficial para os empréstimos e hipotecas, e o poder fiscal adverso é sobremodo atemorizante.
De modo que coincidem, no contexto do interior, os interesses da comunidade e os do fazendeiro. Ao Governo, à cata de vitórias tranqüilas, só resta selecionar, entre os proprietários, aqueles de maior astúcia e prestigio. É claro, comenta Vitor Nunes Leal, que os dois aspectos – o prestigio próprio dos coronéis e o prestigio que o poder publico lhes outorga – são mutuamente dependentes e funcionam ao mesmo tempo como determinantes e determinados. Sem a liderança do coronel, firmada na estrutura agraria do Pais, o governo não se sentiria obrigado a tratamento de reciprocidade, e sem essa a liderança do coronel ficaria sensivelmente diminuída.193
Em geral, as facções de oposição ao mando coronelista são cautelosas, conclamando com prudência desde o início, o mais incondicional apoio ao situacionismo estadual. Por que tamanho ardor na luta, se as facções não sustentam uma idéia? "Simplesmente, por isto:
respondeu um jornal da Mata em 1927 – cada facção, em que se reparte a população do município politiqueiro, tendo à frente um cacique mais ou menos enfezado, anseia apenas pela conquista dos postos administrativos locais, com a sobrecarga das nomeações de subdelegados das suas preferências, e, como a facção diversa lhe ponha embargos à ligeireza, começa o torneio de impropérios e de difamação, cada qual no pressuposto de cair nas boas graças do ocupante eventual do Palácio da Liberdade. Neste comenos, o Governo do Estado aparece fantasiado de amigo da paz, para amparar um dos grupos turbulentos, sem desprezar os outros, está claro, porque é das brigas locais que lhe advém essa unanimidade maciça que tem feito de todos os presidentes mineiros grandes estadistas."194
Ao analisar a estrutura do poder na comunidade da Mata, tomando como ponto de partida a liderança política, sentimos, de imediato, a identidade de métodos de ação e de influência tanto do coronel quanto do doutor, tanto do sacerdote como de outro membro qualquer preeminente do município. Não se distinguem no fundamental.
No vértice da pirâmide sempre estiveram os fazendeiros. A estrutura do poder corresponderia à base econômica e social estratificada.
Do grupo de fazendeiros só sobressaía um, capaz de liderança por qualquer motivo, fosse por tradição de família, sagacidade ou cabedal. A presença de um doutor, de um sacerdote, na liderança, não alteraria o estado de coisas, já que sempre lhes gravitariam ao os interesses da lavoura.
Partindo de tal constatação, chega-se ao problema da liderança, isto é, se, em verdade, o coronel ou o doutor, no comando do poder local, atua com desembaraço e autonomia. O principal fixa-se no exame da tomada de decisão, ou seja, no verificar quais as figuras da comunidade prevalecentes nas resoluções.
Há um grupo próximo ao coronel, seja ele fazendeiro ou não, círculo de amigos e correligionários. Cercam-no nos passeios, nas palestras de bares, no andejo, nos giros pelas imediações do município.
O hábito torna-se tão arraigado que o próprio líder dele não prescinde. Na Mata, dizia-se "a roda", termo que exprime o bloqueio em torno do chefe. Os amigos são diversos. Alguns, por sua atenção, tornam-se subchefes, auxiliares naturais. Outros, por sua insistência, a própria sombra. Aquele líder de pequena comunidade agrada sobremodo a deferência dos companheiros e, em contrapartida, por lealdade, retribui as atenções. Alguns íntimos, sóbrios e discretos, afirmam-se naquela fraternidade, e quando o bom senso 1hes é natural, imprimem a influência sólida e profunda. A tomada de decisão pelo coronel é soma de opiniões diversas. Ele as mede em seu critério pessoal, posto que ideo1ógico, porque aquela roda devia ajustar-se do ponto-de-vista dos interesses da sociedade agrária. Não há regra geral. Muitas vezes, pende, sem motivo plausível, a uma opinião emitida por correligionário menos preparado. Seja como for, ele ouve, discute, refuta, concorda ou discorda. A roda sabe da decisão, comenta-a, aceita-a. Aquele que vencido, contrafeito, se limita à obediência. Orlando de Carvalho advertiu-nos de que o predomino econômico do fazendeiro não justifica por si só a convição de que na estrutura da sociedade rural seja ele um chefe patriarcal com poderes ilimitados. Porque "a consciência social resulta do entrechoque de muitas influências de ordem econômica, cultural ou religiosa, que podem mudar o teor politico."195 Mas o coronel manipula um trunfo para resolver as diferenças, quando estas assumem um caráter desagradável. Ele é o único iniciado no plano superior da política estadual. Freqiienta, em suas viagens, a intimidade da cupula, com ela se corresponde. Tais vínculos dão-1he a palavra de última instância, transmitida num desabafo ao amigo contrariado ou num cochicho de rua. A roda nao mais discute, pois a disciplina é superior a pequenas vaidades ou a pontos-de-vista pessoais. Quanto mais forte o chefe, maior o prestígio entre os amigos e correligionários. Do ápice derivam as diferentes forças, estendendo-se até as bases da comunidade. Do processo participam os cabos eleitorais. Assim, o conceito de lideranqa passa s referir-se a uma relação funcional entre indivíduos e grupos, e não a atributos estáveis de indivíduos ou grupos.196
Bolívar Lamounier não considera inúteis os esforços de pesquisa das influências sociais sobre o comportamento político dos lideres.
Entretanto, apela para o necessário exame das relações entre lideres e liderados, e deles com o ambiente externo, a fim de que se possa especificar a maneira exata da interação entre as variáveis antecedentes e as contextuais, ou seja, entre as origens, recrutamento, personalidade do líder e a situação do grupo.197
Na Mata, a partir da consolidação da economia cafeeira, adveio uma estrutura de liderança. Como processo, encrava as suas raízes no sistema social e político de quase meio século. O retrospecto de seu comportamento, de meados do século passado ate 1945, revela-nos que o líder, coronel ou doutor, pouco difere da média do grupo. O recrutamento não se deveu à origem necessariamente. Entretanto, na raiz das comunidades demora o grande sesmeiro. Em Leopoldina, em Cataguases, em Sao Joao Nepomuceno, em Carangola.
Com o progresso das cidades, perdem a sua necessária dinâmica as variáveis estruturais de origem social. No contexto de sociedade mais desenvolvida, já presentes os doutores, certos atributos individuais incidem, de modo marcante, no recrutamento do líder.
A interação entre líder e liderados sofre modificações do abrandamento do papel carismático da estrutura da liderança. O velho coronel abandona seu lugar, ou se recolhe aos bastidores, deixando em primeiro plano o líder instrumental. Surge então o doutor. O sentimento que ele desperta nos liderados é mais de admiração que de respeito. Em certos casos, o processo ficou em meio, na liderança sem as velhas características. Meio-termo de afetividade instrumental ou quase tecnocrática.
No exame das regales entre líder e liderados, há outros aspectos que devem ser considerados. Em primeiro lugar, o coronel ou o doutor pouco difere da média do grupo. Quanto mais ajustado ao modelo patriarcal, nas relações familiares, mais fácil o diálogo com os membros da sociedade. 0 modo de vida o nivela a outros, tanto no jeito de expressar-se como no modo de saudar as pessoas.
Seus atributos pessoais vêm em seguida, fortalecendo ou enfraquecendo a condição de líder, sempre no sentido de variáveis que atuam em função de seu ajustamento ao grupo a que pertence. O complicador seria sempre a circunstância que fugisse ao usual, ao comum, à rotina.198 Todo o conjunto de semelhanças, de hábitos comuns, desemboca na compreensão política e social. Daí nasce o sistema de interações padronizadas, nunca aleatórias, como salienta Bolivar Lamounier. Para Parsons, um sistema de açoes.
A preocupação seria, pois, buscar os requisitos funcionais do sistema. Os objetivos desejados reduzem-se, na comunidade da Mata, à edificação de escolas e prédios públicos, custos de determinados serviços, facilidades de crédito para lavoura, forma de incentivo ao co- mércio e à pequena industria. Ao lider compete a recepção das idéias do grupo liderado, conduzi-la ao seu destino. Na escolha de formas taticas, as sugestões dos liderados emprestam às relaqoes a forqa interativa social e politica. Alguns grupos atuam de forma especializada no con- texto dos fins coletivos. Associações rurais e comerciais, maçonaria, congregações religiosas. A circunstância favorecia a admissão do doutor na liderança. Um dos caminhos a possibilitar a mudanqa do velho coronel no lider com instrução superior.
Médicos e advogados levariam na Mata os doutores à liderança. Igual status definia-se no termo genérico. 0 respeito de todos à condição que o curso superior proporcionava traduzia-se em pormenores significativos nas relações usuais entre os membros da comunidade. Dava-se-lhes o canto da calçada, mais solene se fazia a saudação e presença deles nos bares e na rua provocava a atitude geral de acatamento.
Moço ou idoso, sua presença nas festas familiares ou nos círculos sociais despertava a natural atração de todos, proximidade dos mais velhos, atenção das senhoras e atitude de constrangimento dos mais humildes. O doutor procurava, na maioria das vezes, transmitir a soberbia a que pudesse corresponder àquela perplexidade. Vestia-se bem e uma certa postura de superioridade ajustava-se àquele quadro de afetação e subserviência.199
O status dir-se-ia primeira condição que o levava à liderança. De seu prestigio não podia duvidar o próprio coronel, fosse ele fazendeiro remediado ou rico latifundiário.
Assim, um passo apenas o separava de um casamento oportuno. Emil Farhat daria ênfase a tal situação, salientando que o "coronel foi para o fundo do cenário, deixando, cautelosamente, no primeiro plano, na direção política de seu feudo o genro-doutor, a fachada moderna do coronelismo."200
Não há duvida de que pudesse haver premeditação em muitos casos. Mas na cidade ou no arraial o doutor encaminhava-se naturalmente para o casamento no restrito circulo da gente de qualidade. Seria como que imposição de seu próprio status. Às vezes, porém, era filho do fazendeiro, herdeiro natural de sua liderança. Instrução, palavra fácil, conhecimento da cidade grande, tornavam-no diante do pai a figura superior, capaz da firme direção nos negócios públicos.
Pouco importava o curso – Medicina, Direito, Engenharia ou Farmácia. Bastava o anel de grau e a afirmativa em voz solente, feito professoral, de assunto de lei ou moléstia de corpo. Pois o doutor opinava sobre tudo, lia livros estrangeiros, acompanhava a política do mundo e, sobretudo, manipulava termos complicados. A classe média urbana funcionava ainda como pregoeira de suas virtudes intelectuais, orgulhando-se da intimidade de suas palestras ou pelo menos da elegância de seus cumprimentos. Nem as moças escapavam, et pour cause, desta singular sedução.
Outras situações o conduziam à liderança. A boa clínica, dedicação aos pacientes, facilitava, ao cabo de alguns anos, a projeção de um médico por todo o município. Convocado a um cargo político, a clientela reconhecida comparecia ao chamado. Mister, bem verdade, que se afinassem o doutor e os interesses da lavoura. Que o poder da situação à aliança bendissesse.
Podia ocorrer o mesmo com o advogado. Chegado para o júri ou para as longas demandas, firmar-se-ia na opinião atenta dos clientes para projetar-se, pela retórica ou ilustração, na política do município.
Dir-se-iam casos raros. A maior parte dos doutores levados à liderança foi imposta pela política da capital. Arribavam como delegados especiais, promotores públicos e até como juizes de Direito.
O Presidente do Estado dava-1hes apoio ostensivo, e os fazendeiros, às vezes contrariados, aceitavam a liderança. Certos de que as qualidades pessoais do apaniguado contribuíam para a liderança definitiva ou passageira. Houve casos de firmarem-se tais políticos por anos a fio, enfrentando até oposição, lealmente presos ao chefe derrubado. Entre os bernardistas figuravam muitos antigos protegidos de Raul Soares, arrostando com dignidade o ostracismo.
O doutor poderia ainda emergir como líder em condição de aliado. Ajudando o coronel, contribuindo para as suas vitórias, recebia a recompensa na eleição para deputado ou prefeito. A hipótese, anotou-a Rubens do Amaral, em outra região. "Muitas outras vezes, em simbiose, o coronel entrava com a influência pessoal ou do clã, com o dinheiro e a tradição; o doutor, a ele aliado, com o manejo da máquina, incumbindo-se das campanhas jornalísticas, da oratória nas ocasiões solenes, do alistamento, das tricas da votação, da apuração e das atas, dos recursos eleitorais e dos debates da vereança quando havia oposição.201
XII
A MATA E A REPÚBLICA VELHA
EM 1870 DIVERSAS assinaturas de mineiros subscreveram o Manifesto Republicano. De Juiz de Fora ecoaria, então, um dos principais pronunciamentos: vinte e nove personalidades hipotecaram solidariedade ao Clube Republicano do Rio de Janeiro e, em seguida, ao novo partido apresentava apoio o jornal O Farol, dirigido por Tomas Cameron.202 Tornar-se-ia Juiz de Fora, na província, um dos três núcleos importantes do movimento. Com sede em Leopoldina, o 9º Distrito, dos mais aguerridos redutos do escravismo e da monarquia, abrangendo Além-Paraiba, Muriaé, Mar de Espanha, Cataguases e Palma, também constituía um dos pontos principais da nova propaganda. Lá se prestigiava Américo Lobo, que, embora não professasse o novo ideal, era adepto de um liberalismo avançado.203
Em 1887 o partido apresentaria candidatos as diversas eleições municipais, obtendo cadeiras não só em Juiz de Fora, mas em Cataguases. No mesmo ano organizava-se o diretório na primeira das cidades citadas, elegendo-se os chefes José Caetano de Morais e Castro e Constantino Luís Paleta. Ainda o último seria apresentado candidato às eleições provinciais, juntamente com Henrique Cesar de Sousa Vaz.204 No ano seguinte, em 1888, já havia, em Minas Gerais, cinqüenta e seis clubes republicanos. O movimento dia a dia ganhava expressão. Em Juiz de Fora, 352 eleitores do 10º Distrito reuniram-se a fim de formar a comissão permanente para dirigir as atividades partidárias. A maior cidade da Mata mantinha-se na vanguarda. Lá residia, a esse tempo, Fernando Lobo, que articulava a campanha com os seus irmãos Américo, em Leopoldina, e Joaquim, então presidente da Câmara Municipal de Cataguases.205
Após a Lei Áurea, toma grande impulso o movimento, quando se passou a explorar a irritação dos fazendeiros de café com a extinção do trabalho servil. Multiplicou-se a imprensa militante. Em 1888 apareceram três novos semanários.206 A 15 de novembro do mesmo ano formou-se o Partido em Minas Gerais. Sob a inspiração de João Pinheiro, reunira-se convenção em Ouro Preto. A propaganda organiza-se. Percorreu então Silva Jardim as principais cidades da Mata, proferindo palestras e participando de comícios.
Em julho de 1889 o Partido Republicano de Minas começou a preparar-se para as eleições da Câmara-Geral. Reunido em congresso, apresentaria formalmente seus candidatos, incluindo diversos nomes da Mata, como Antônio Dutra Nicacio, Constantino Luís Paleta e Policarpo Rodrigues Viotti.207
A Republica em Minas seria a rubiácea. Identifica os interesses do Sul do Estado e da Mata, unindo as regiões nas artimanhas políticas. Processam-se as contradições no quadro a que não faltam singularidades ideológicas. A ascensão de Cesário Alvim à presidência do Estado explica-se sobretudo por ligações pessoais a Deodoro. Filho da velha região do ouro, era fazendeiro em Ubá, o que significava um divisor comum entre forças regionais.
As regiões agrícolas do café empenham-se no embate contra o tradicionalismo mineiro. Tendências separatistas que repontam no Sul e na Mata revelam a intensidade da luta.209 Rivalidades também se observam entre Juiz de Fora e Ouro Preto, e a construção da nova capital, Belo Horizonte, já denunciava o golpe ao velho sentimento das Gerais.
Afinal, as forças dividir-se-iam em definitivo. Mata e Sul congregam-se contra o Centro. O café unia os interesses dessas regiões. Desde os princípios da Republica, o poder caracterizava-se por base municipalista. Silviano Brandão, do Sul, secretario do Interior de Afonso Pena,210 havia pacientemente formado diretórios municipais, montando a maquina que 1hes permitisse o fortalecimento.
Para detê-lo, suscita-se o principio de que o Secretário de Estado, favorecido pelo exercício do poder, não devia candidatar-se, pois entraria no jogo com Cartas marcadas. Bias, então escolhido, elege-se, prorrogando o período de transição.
No quadriênio seguinte, o principio é restaurado contra Henrique Dinis, mas novo expediente, com a introdução da convenção dos diretórios, favorece Silviano Brandão. Minas ficaria, assim, submetida ao poder do café.
A Mata participa com desembaraço nos conchavos da sucessão estadual. Nessa primeira fase, o Partido é impregnado de silvianismo, apoiado em três cidades do Sul: Pouso Alegre, Ouro Fino e Itajuba. Vesceslau Brás então desponta, ocupando a Secretaria do Interior.211
A morte de Silviano interromperia a sucessão de políticos sulistas. A eleição de Francisco Sales possibilita a recomposição de forças, sobressaindo o sentido conciliat6rio. A depressão do principio de século oferecia um quadro assustador, com a queda dos preços do café.
O governo mineiro então convocaria, em 1903, em Belo Horizonte, o Congresso Agrícola Industrial e Comercial a fim de apresentar uma solução para a crise. João Pinheiro, convidado por Sales, aceita presidi-lo.
Era João Pinheiro bacharel de formação positivista, apto a aceitar a intervenção do Estado no domínio econômico, podendo pois advogar mudanças destinadas à sustentação do café.
Ano depois, em plena crise, em torno do credito agrícola, objeto de projeto de lei estadual, fere-se o embate entre o liberalismo econômico tradicional e as reivindicações intervencionistas. Heitor de Sousa e Carlos Peixoto, representantes da Mata, pregavam a proteção oficial ao café, obtendo do Legislativo mineiro o preceito que autorizava o Presidente do Estado a acordar com o Governo Federal e com o de outros Estados medidas que tendessem a elevar o valor do produto, regularizar-lhe a exportação e normalizar-1he o comércio. A lei n. 400, de 13 de setembro de 1905, consagraria o principio da intervenção do Estado no domínio econômico.
Em conseqüência, em 1906, a 26 de fevereiro, assinavam o Convênio de Taubaté os presidentes das províncias cafeeiras de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. Decidem os três governos a sustentação do preço, mediante estocagem, fazendo assim escoar o produto à medida das necessidades do mercado consumidor. 0 Estado de São Paulo obteve o empréstimo para a manobra de estabilização.
O Convênio de Taubaté seria a base do café-com-leite, retratando a colaboração de Minas e São Paulo no jogo político federal.212
Com Campos Sales devia iniciar-se o rotativismo presidencial na praxe a que o Rio Grande do Sul em vão tentava opor-se. A política dos governadores estrutura-se irrecorrivel, tendo por sustentáculo a manipulação dos cordões do reconhecimento dos poderes. O embasamento rural do mando político articula-se nos conciliábulos, seguindo a Campos Sales seu correligionário e coestaduano Rodrigues Alves. Três presidentes paulistas sucederam-se diante da contida ansiedade de Pinheiro Machado.
A sucessão, em 1906, poderia conduzir Bernardino de Campos à presidência, já que Rodrigues Alves o preferia. Mas em Minas as influencias do Centro, Norte e Mata se articulam.
No esquema do silvianismo, o arreglo consolida-se. Bias representa o Centro, Norte, por Chaves, e a Mata se faz ouvir por Costa Reis. Articula-se a candidatura Afonso Pena, mineiro que poderia, com o apoio de José Marcelino, da Bahia, e de Pinheiro Machado, barrar as intenções de continuismo paulista de Rodrigues Alves.
Do ponto-de-vista geopolitico, urge convir que o poder nas Minas repousava ainda no trecho do território mineiro quase paulista. A incorporação de outra cidade, Santa Rita do Sapucai, representada por Delfim Moreira, favoreceria a manutenção do grupo silvianista nas rédeas do poder.
No contexto da política dos governadores, de fato iniciada com Afonso Pena, o conflito entre o liberalismo dos bacharéis e as reações ético-caudilhistas mais uma vez reaparece. Quando da posse de João Pinheiro no Governo de Minas, Pinheiro Machado condena a política de conciliação. Afonso Pena, sentindo o desafio, preconiza a filosofia tradicional do liberalismo montanhês.
Tal como o seu antecessor paulista, Afonso Pena tenta um candidato de algibeira e se vê repelido. Também a variável da morte interfere desconcertando os arranjos. João Pinheiro, governador de Minas, falece em outubro de 1908.
A ruptura da política do café-com-leite talvez se prendesse a descoordenação das candidaturas. Afonso Pena não considerou, com exame cuidadoso, a oportunidade do nome que unisse Minas e São Paulo. Fixou-se teimosamente em Davi Campista. Bastaria o erro tático para que Pinheiro Machado, escamoteando habilmente um tertius, Rio Branco, obtivesse a eleição de Hermes da Fonseca.
A escolha infeliz interromperia por quatriênio a fase nacional da mineiridade.
Caro custava ao Pais a circunstância. O governo militar provocava o caos, a repressão desabrida e brutal, o desrespeito à ordem jurídica. Pinheiro Machado aspiraria à sucessao do Marechal., Antepõe-se-1he o liberalismo mineiro. Cogita-se dos nomes e da tática. Bueno Brandão, Presidente de Minas, vinculado estreitamente a Venceslau Brás, representa o velho espirito silvianista.
A Mata, pela primeira vez, almeja indicar um candidato. Ribeiro Junqueira advoga por Francisco Sales. Mas o condomínio silvianista ainda controla e comanda a maioria dos diretórios. O Pacto de Ouro Fino, firmado por Cincinato Braga, em nome de São Paulo, e Bueno Brandão, em nome de Minas, restaura o compromisso de ação única para o problema sucessório. A base para a recusa frontal a Pinheiro Machado estava montada, e a Comissão Executiva do Partido Republicano Mineiro ratificá-la-ia. Em seguida, a proposta do nome de Vesceslau é levada a São Paulo por Bueno Brandão. Mas havia de exaurir-se o silvianismo no âmbito estadual. A vez da Mata chegaria, sem que se modificassem as regras do jogo. A cunha introduzida na cúpula do Partido Republicano Mineiro consolida-se no primeiro lustro do século e começa a derruir os esquemas dos políticos do Sul. Raul Soares e Artur Bernardes unem-se e coordenam as atividades. Bernardes viera de Viçosa e fora secretário da Fazenda no governo de Bueno Brandao. Raul Soares, filho de Ubá, exercera, na gestão de Delfim Moreira, a Secretaria da Agricultura e Obras Publicas. Assumiram ambos a chefia da política da Mata, e ao final do governo estadual de Delfim Moreira – atreitos às manobras – estabeleceram a estratégia para a conquista da Comissão Executiva do Partido Republicano Mineiro. O silvianismo retirava do bolso, sem consulta, no estilo de sempre, o nome de Américo Lopes. A oportunidade do veto levaria Artur Bernardes à presidência do Estado. Francisco de Assis Barbosa assim descreve a manobra: "Chefes absolutos da Mata, os dois (Bernardes e Raul Soares) tinham que iniciar a ofensiva pela posse da Comissão Executiva do P.RM. Apenas aguardavam a hora propicia, que chegou por ocasião da escolha do sucessor de Delfim Moreira na presidência do Estado. Sales, Venceslau e Bueno Brandão acertaram logo o nome, o do Secretario do Interior, Dr. Américo Lopes, sem prévia audiência de Raul Soares e Artur Bernardes. Fato consumado, uma vez conhecida a decisão da Tarasca, em comunicado à imprensa, ninguém poderia imaginar o veto do Secretario da Agricultura. A linha adotada pelos coronéis – suaviter in re et fortiter in modo –(com doçura na coisa e energia na maneira) era a de respeitar o que fosse decidido nos conciliábulos da Comissão Executiva do P.R.M. Tinham a maioria. Mandava a maioria. Não se admitia a voz discordante, porque havia de repercutir desastrosamente fora do Estado qualquer dissídio que pudesse enfraquecer, mesmo de longe, a união sagrada de Minas. Dai o recuo estratégico de Francisco Sales ante o gesto de inopinada audácia de Raul Soares, concordando em retirar a candidatura já apresentada e aceitando a de Artur Bernardes. Cindida a política mineira, arriscava-se a candidatura de Delfim Moreira à Vice- Presidência da Republica, desarticulando o esquema do cafe-com-leite.213
Dispondo da Tarasca, no posto supremo estadual, a Mata predomina nos concílios da política, sem comprometer a união com São Paulo. 0 falecimento de Rodrigues Alves levaria Delfim Moreira, um silvianista, à primeira magistratura da Nação. A eminência parda do período seria Afrânio de Melo Franco, mineiro de Paracatu, porém tão chegado a políticos do Sul quanto aos da velha região mineradora. Amigo de Bernardes, incumbe-se do entrosamento, no plano federal, com a situação mineira, visando às eleições de 1918. Urgia fazer face ao complicador no tabuleiro: a morte de Rodrigues Alves. O embaraço aumentava em face do isolamento do Rio Grande do Sul após o assassínio de Pinheiro Machado. Borges de Medeiros não dispunha dos cordões que o caudilho morto sustentara por mais de um lustro. Minas e São Paulo tinham, porém, nos seus governos, Bernardes e Washington Luís, dois nomes ainda sem prestigio nacional.
Pelas regras do jogo, São Paulo devia dar o presidente, já que o seu anterior candidato não chegara a empossar-se no Catete. Mas tanto Washington Luís como Altino Arantes eram jovens para lograr apoio das figuras de âmbito nacional. Minas poderia então participar da disputa. Bernardes perceberia, no entanto, as restrições que o seu nome levantaria, pelas mesmas razoes de autoridade sem um lastro de experiência.214 Outra condição fortalecia-lhe a atitude. A Mata chegara à presidência do Estado, mas não contava com a retaguarda preparada ao jogo sucessório. Apoiar um mineiro e conservar o Palácio da Liberdade seria pôr no Catete um silvianista.
Partir ele próprio, enfrentando a desconfiança dos políticos nacionais, seria deixar o governo estadual nas mãos de um inimigo intimo, ou seja, um silvianista.
Firmou-se então Bernardes inteligentemente na condição de árbitro. Munido de plenos poderes pelo Partido, deu inicio as conversações, investindo Raul Soares, seu Secretario do Interior, nas funções de articulador. Ele e Raul Soares parecem ter planejado a indicação de um politico de pequeno. Estado, a fim de controlar a situação de Minas e manter a tradicional ligação com São Paulo. Afonso Arinos transcreve, em sua admirável biografia do pai, o telegrama que Raul Soares enviou a João Luís, acentuando a resolução que Bernardes assentara de sempre agir de acordo com São Paulo.(215)
A escolha, no tabuleiro da sucessão, incidiu sobre Epitacio Pessoa, o candidato que menos convinha aos seus adversários internos do P.R.M. A composição daria tempo para preparar o salto da Mata ao Catete.
O arreglo pressupunha o compromisso com São Paulo para o período seguinte, o que explica a intransigência de Washington Luís quando às objeções a Bernardes começaram a ser levantadas.
A Zona da Mata alcançava a presidência da Republica em meio ao tumulto e indisciplina. Bernardes, disposto a reagir, receberia de seu companheiro de luta, Raul Soares, a carta de coragem e civismo, de tanta expressão quanto a campanha civilista de Rui: "Eu sou dos que entendem que é melhor uma revolução franca, em que os militares tomem a responsabilidade de convulsionar o País, do que a entrega do aparelho constitucional aos militares, feito pelos próprios políticos."
Em 1918 elegia-se Bernardes, e empossava-se, fixando na História a imagem do político da Mata, na verdade diversa, em seus defeitos e qualidades, dos tradicionais lideres do Sul e do Centro do Estado de Minas.
XIII
A PAISAGEM SOCIAL
No MEADO DO OITOCENTOS ganha nítido contorno a paisagem social. As aldeias viraram cidades, crescidas com casario e jardins. (215) O café fortaleceu a lavoura, e o trem facilitaria o contato com o progresso litorâneo. Chega a informação pelo telegrafo e correio, atualizando a gente interessada nas coisas.
A cidade conquista o calçamento. Pés-de-moleque cobriram-lhe as ruas estreitas. Seguiam a água encanada e serviços de esgoto. Seu aspecto e diverso, embelezada e limpa.
Aprimoram-se as construções; resiste à poeira o caiado das casas. Os fios de iluminação elétrica elevaram-se, dispuseram-se, ante a surpresa dos matutos, e a linha férrea estendeu-se por diferentes caminhos. A folha da capital, diária, trazia as novas. Aparece a imprensa. Escolas e grupos deram inicio à atividade da instrução. Irradia-se o ensino. Parte de Juiz de Fora e de Leopoldina. Alguns abnegados penetraram pelo Interior, fundando escolas em pleno sertão.
215 Do ponto-de-vista urbanístico, a maioria dos núcleos são do tipo linear, cujo traçado, pois, parece derivar de um processo de povoamento ao longo dos vales. Orlando Valverde sugere ainda uma causa comercial. "As fazendas, antigas e modernas, eram, tanto quanto possível, auto-suficientes no que diz respeito a produtos alimentares; mas uma larga porção de produtos tinha de ser comprada fora: sal, tecidos, objetos de metal, fósforos, querosene, cordas etc. Certamente muitas fazendas possuem vendas, mas havia necessidade de um centro regional de abastecimento, que era também um centro comercial (igreja, cartório, clube etc.)... Ora, para o comercio o fator transportes e vital, pois aquele depende sobretudo das trocas. Iam assim surgindo as lojas ao longo da estrada. gerando um Strassendorf." Além do tipo referido, há outro que dele difere. Trata-se do castrum, resultado da doação de um patrimônio para a construção da capela. As dimensões da doação permitem um jardim, de forma quadrângular e de cujos vértices saem as ruas. A Igreja destaca-se num dos lados. Algumas vezes, combinam-se os padrões e, em muitos casos, o crescimento desfigura o tipo. "As cidades maiores do leste da Mata – Muriaé, Manhuaçu, Manhumirim, Carangola – lembra Orlando Valverde, estão nesse caso.
A vida desenvolve-se de forma idêntica em inúmeras comunidades das antigas Áreas Proibidas. Agrupam-se os habitantes em classes. Na camada superior estão os fazendeiros, os doutores, os compradores de café, os funcionários públicos, os farmacêuticos. Constituem a elite, interligam-se em relações sociais e familiares. Na segunda camada vêm os proprietários menores. Na mesma categoria se acham os caixeiros e os pequenos comerciantes. Por fim, a ralé, constituída de assalariados. gente sem recursos, pobres de toda espécie, operários e domesticas. Entre as duas primeiras camadas não há propriamente separação estanque. Comunicam-se, ou limitadas restrições se fazem a pleno convívio.
No atinente à ultima, encontra-se só no quadro da comunidade. Nota-se certo retraimento da classe média urbana a qualquer manifestação expansiva da gente considerada inferior.216
O cotidiano pouco diferencia as pessoas. Alimentação quase idêntica. Prevalece a economia natural, pois hortas e pomares são comuns nos grandes quintais da cidade. Criam-se porcos e galinhas, o que possibilita, no meio urbano, o nivelamento da dieta. O trivial é o mesmo na fazenda. Nas mesas das camadas da classe média rural, toucinho, carne-seca, arroz e feijão tropeiro. Verduras variadas, couve principalmente. Frutas e doces de goiaba com queijo, de pospasto. No final da semana, há fartura, com galinha em molho pardo ou feijoada completa, acompanhada de vinho em geral verde português. Entre os pobres, pequena a diferença na alimentação, quantidade menor de pratos e ausência de vinho.
Excetuando o trabalhador rural, andrajoso e descalço, as pessoas vestem-se do mesmo modo. Até a década de vinte os moradores de condição superior trajavam fraque, principalmente os doutores. De vinte em diante o linho inglês substituiu o rigor antigo. Os próprios fazendeiros o preferiam, e a moda permaneceu até o fnal da Primeira Guerra.
Os costumes também nivelavam as criaturas. O morador da sede desperta pouco mais tarde, por volta das sete horas. Já o dos bairros, em geral os mais pobres, mantinha hábitos de fazenda, madrugando.
O citadino segue para o trabalho após o café da manhã Refeição de pão, queijo, manteiga e café com leite. Retorna às onze para o almoço. Não se fazia a sesta. Raro o caso de recolher-se alguém depois da primeira refeição. Após o jantar, às cinco horas da tarde, voltavam os homens à rua principal, para o passeio. Em sua maioria, deitavam-se às nove da noite. Em muitas cidades o horário de recolhimento fixava-se pela chegada do expresso da Leopoldina. O trem trazia os jornais e punha fim à jornada.
Há inúmeros hábitos que fortalecem a sociabilidade. Ao redor do banco do jardim, no bar, na barbearia e na farmácia, reúnem-se, anos a fio, em palestras infindáveis, os figurões da cidade. Ha o costume de interromperem-se as caminhadas para encontros e cumprimentos que se convertem em conversa. No período da prosperidade ate a década final do século XIX, enchiam-se as ruas de tropas e caipiras.
Os sinos da Ave-Maria, repicados na igreja, ensejavam o passeio dos adolescentes, enquanto no jardim as crianças corriam em disputas. Alguns bailes e prolongadas festas religiosas. Os adultos divertiam-se em visitas e em palestras sobre política e plantação.
As matronas pouco saiam. No entanto, acompanhavam a vida sentimental da cidade, debruçadas nas janelas horas esquecidas. Uma ou outra entregava-se a comentário maldoso, a implicâncias e pequenas intrigas. Por via de regra, a mineira da Mata era discreta e prudente. Guardava os segredos e apenas com as intimas inclinava-se em confidências.
A vida na cidade era aliviada, tal como na fazenda, por fácil e vasta criadagem. Duas ou três domésticas faziam, em geral, o serviço inteiro, lavando, cozinhando e cuidando das crianças. Rara a família que não tivesse, em seu meio, como agregada, a preta velha, mãe-de-leite da patroa ou do patrão, zelando pelos rebentos.
Mais tarde, o cinematógrafo provocou um assombro no meio rural. Os dramas e tragédias originaram a nova problemática na vida rústica e urbana. Uma serie de assuntos intercalou-se nas conversações, e o cinema colaborava decisivamente para a ruptura de muitos preconceitos.
A desenvoltura das heroinas, nos romances de amor levados à tela, suscitou um impacto na velha sociedade do sertão. Mal crescera a comunidade, apareceu o bacharel. Muitas vezes, filho da região, de fazendeiro. Encontra e teme intelectualmente rábulas itinerantes, de comarca a comarca, em longas distâncias, solicitando no crime. Monta banca, casa-se na terra, entra resoluto na política.
O médico ora o segue, ora o precede, no arraial. Enfrenta o curandeiro, poderoso na Mata, misterioso e temido, respeitado pelos adultos. Preto velho, em geral, cuja ciência de bruxedo o afasta dos seres comuns.
Vive este último distante, em moradas humildes ou em palhoças, quase sempre, pois a moeda só é recebida em casos especiais. A lamparina, ao longe, denuncia o local. Solitário, fuma o cachimbo e convive com animais, alimenta-se de ervas, reza e medita. A medicina é mistura de crenças africanas e conhecimento de leigo, empírico e difuso. O curandeiro atende a todos, sem distinção, ao senhor e ao escravo. Benzem-lhe as mãos com igual fervor ricos e pobres. 0 olhar e é arma dos milagres, que se projetam pelas distâncias. O simples toque no local dolorido, no braço imobilizado, as palavras sussurradas em estranho murmúrio, produzem no enfermo a tremura a desfazer o mal. Por quase um século, dominam o sertão. Chegam os doutores, mas eles permaneceram até a morte sem abalo do prestigio, tranqüilos em face do adventício.
Defronta-se o doutor com curandeiros, e até com as pretas velhas, aptas a tratamento de pequenos males, quebrantos e mau-olhado. A criança que facilmente se constipava ou que surgisse com urticária, furúnculos, có1icas, era benzida sete vezes seguidamente. Com linha e agulha, a preta indagava: – "Que coso?" Após a resposta do paciente: – "Carne quebrada, nervo torcido e osso desconjuntado" – volvia ela, cosendo em cima da contusão: – "Isso mesmo eu coso, em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo e da Virgem Maria."217
Galhos secos vinham embrulhados a casa, postos em óleo e de leve batidos, enquanto se orava com mistério. E negras ainda ajudavam nos doces, fazendo enfeite, mexendo goiabadas nos grandes tachos de cobre. Eram versáteis. Desde contadeiras de histórias até parteiras. Neste particular, a admissão do medico tornou-se difícil, quase impossível: o mineiro da Mata não admitia que mão masculina 1he tocasse na esposa. Ate a década de vinte, eram elas, as pretas, que chegavam para o serviço do parto e assistência à sinhá. Mas a doutor acabaria vencendo as desconfianças. Também dividiria com o bacharel a prática da política, casa-se às vezes com a filha do fazendeiro, e com freqüência esquece a medicina pela atividade da lavoura.
O doutor procedia do Rio, de São Paulo e do Recife. Médico ou bacharel, apresenta características comuns de natureza cultural. Humanidades no Caraça ou em Ouro Preto davam-lhes um lastro de cultura clássica. Conhecimento das coisas, conjunto de noções de Ciências Físicas e Naturais, Matemática, Filosofia e estudo de Latim e Literatura. Dos idiomas, o francês era sempre conhecido.218 Mas o que os distinguia era o domínio do vernáculo.
A primeira geração de doutores já se faz notar pelo português castiço e elegante. Um tanto rebuscado o estilo daquele que freqüentava os jornais ou arrazoava, como os advogados, nos autos das demandas. A imprensa da região registra a passagem por suas folhas de latinos e conhecedores da língua, formados na leitura dos clássicos. Observa-se ainda a forte influência da França; as referências, os exemplos, sempre se voltam para a sua historia e literatura.219
Do ponto-de-vista ideológico, são liberais. As lições de direito público, as repercussões do legalismo norte-americano, todo o quadro, enfim, de fórmulas constitucionais, impregnava a atmosfera das elites do Interior. A magistratura recrutava ainda, para os cargos de juiz e promotor, bacharéis formados no Recife, que, quase sempre, traziam às comunidades a contribuição democrática.220
A oratória também participa, de forma impressionante, das preocupações e dos cacoetes. O doutor pratica-a, dela faz uso quando pode, nas festas, nas reuniões políticas. O brilho da palavra empresta-lhe quaestedades que o levarão, muitas vezes, às assembléias legislativas.
Na textura da Mata, porém, impera a violência. Na fazenda, curvado em seu canto, o jagunço aguarda o aceno do senhor para a empreitada oportuna. Geralmente ele agride de surpresa, convocando o homem adequado e dando-lhe as instruções terminantes. A arma, a garrucha, já pronta se acha desde os tempos do sertão. Na tocaia, por dias, o cabra espreita o caminho, escolhendo para o crime as noites de lua. Foge, em seguida. Retorna à fazenda, ao sossego, picando tranqüilo o fumo, na manhã seguinte, para o cigarro de palha.
Nos arraiais a noticia do fato repercute, e as duvidas e suposições crescem nos murmúrios. O morto era também valente, fizera inimigos, carregando dezena de ameaças. Alguns nomes suspeitos são lembrados nas conversações. As diligencias da autoridade esbarram, as mais das vezes, com o silencio e frieza do mandante. Ele nada sabe, nada ouviu. Rixas com o morto são lembradas, velhas advertências se recordam.
Em seu canto, o jagunço silencia. De quando em quando, a trama se desvenda, em face, quase sempre, de imprevistos ou descuido. Mas o fazendeiro, antes que o homem seja levado a depoimento, abre-lhe a bolsa, e parte adiante o criminoso, sobe as serras e toma o rumo sem destino e sem retorno.
Muitas vezes, reúne o jagunço, na lenda de seu nome, o rosário de crimes infindáveis. Quando atravessa o lugarejo, curvado em seu corcel, revelam os olhares certo tom de admiração e terror. Muitos morreram velhos e conservaram até o fim, em silêncio e num riso enigmático, o segredo das tragédias do passado.
Mas o crime não era apenas apanágio dos profissionais. O fazendeiro, o sitiante, o agregado, o caipira, perpetravam-no, e qualquer desculpa podia servir ao desfecho de sangue e morte. Nem sempre o evento nascia de premeditação. Não raro decorria de ânimo exacerbado, intriga política, casos passionais. A disputa, por qualquer pretexto, resultava quase sempre em tiroteio. Já se observou, no tocante à presença da violência no meio rural, "que a oposição entre as pessoas envolvidas, a expressão em termos de luta e solução por meio da força, irrompe de relações cujo conteúdo de hostilidades e sentido de ruptura se organizam de momento, sem que um estado anterior de tensão tenha
contribuído"221 Dir-se-ia que a violência não se relaciona necessariamente a situações cujo caráter se ligue a valores estimados.
O julgamento do delito, em termos legais, após as vicissitudes do processo, bem ilumina a sua natureza. A comunidade, rigidamente presa a um código de moral agrário, tinha o sentido exacerbado de honra. Provocado, de que maneira fosse, ou mesmo provocando, em defesa de sua vida ou de sua honra, de sua família ou de terceiros, aquele que delinqüia era julgado e absolvido. A moral legitimava a violência do sertão.
A política também intervinha no quadro de modo permanente. Quando a vitima pertencia ao partido da. situação, a força policial lançava-se ao culpado e a luta. de influências travava-se durante o sumário e o julgamento. O júri constituía o final do medir de forças. A cabala mobilizava gente de todos os quadrantes, até de pontos remotos.
É, pois, de grande significado o júri na região. Dele todos participam, aguardando-1he o momento dos debates. Os crimes de maior ressonância atravessam a madrugada, invadem a manhã e a tarde seguintes, e quando o juiz proclama o veredicto, todos se mostram fatigados.
O prestigio do júri ganha o seu apogeu na prosperidade do café. As sessões são concorridas, e suas memórias perduram por dezenas de anos. Nos fastos da. comunidade, servem de marco inesquecível.
Cabia, realmente, à comuna, sem exceção de classes,. a singularidade de tal devotamento. Porque homens de posse, caipiras, mulheres e até crianças se empolgavam com o debate, tomavam partido, vangloriavam-se ou se constrangiam no final do espetáculo.
Diante de tal prestigio sobressaia a figura do advogado criminal. Alias, nenhum bacharel que se prezasse poderia escapar da contingência de freqüentar a tribuna do júri. Seu encanto profissional repousava em dois elementos: a astúcia de processualista e os recursos de orador. E quanto mais retórica, maior o seu prestigio.222
Tais requisitos acrescem o brilho ao bacharel, a seu status. As tradições registram casos curiosos. De uma feita, por exemplo, recebeu Santa Luzia do Carangola um doutor novo. Vinha tentar a vida com bisturi e receita, cheio de ciência para o diagnóstico infalível. Começou a lida na terra de sua esperança. Mas a gente não reconhecia, contrafeita e descrente. O moço quase se desespera. Indaga de amigos e recolhe o silêncio constrangido. Até que um matuto sincero revelou as causas do equívoco.
À afirmativa de que o doutor fazia milagres com a sua ciência, o outro perguntou, em tom de desafio: – "Ele faz defesa no júri?" Não houve remédio senão dobrar o avental e vestir a beca. Deu-se um julgamento, o médico absolveu o acusado, e a comunidade o consagrou então como esculápio de primeira.223
Tal prestigio do bacharel e conjuntural, pois a sociedade de fazendeiros e a incipiente burguesia urbana exigiam, no restrito campo de suas necessidades, o legista para as soluções dos atritos e dos crimes adstritos à paisagem social. O domínio da palavra e o reconhecimento da legislação tornavam-no solicitado, tanto na demanda propriamente dita como na função de conselheiro e mediador, quando as situações determinavam a opção pelo acordo. Torna-se, assim, o esgrimista da sociedade rural. A versatilidade lança-o a diversas tarefas. A política o seduz, e para alcançá-la ou se torna fazendeiro ou na fazenda se incorpora pelo matrimônio. E desdobra-se na sua variada atividade, nos jornais que funda pelo Interior, e no próprio magistério, quando toma a iniciativa de fundar colégios e lecionar nos cursos do Interior.
XIV
0 MINEIRO DA MATA
Salientam os Autores as diferenqas entre o litoral e o interior das Minas urbanas. Paisagens sociais próprias, isto e, tipicidade em razão de maior ou menor força de traços genéricos comuns. A faixa praieira sofre um processo de contínuo desenvolvimento. Voltada para o Atlântico, nela se ergue a ponte de constantes relações comerciais com o mercado externo. Por ela chega também o ataque das incursões estrangeiras. Disso resultam senhores rurais e uma sociedade estratificada, conservadora, hierarquizada 224 "A força concentrou-se nas mãos dos donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres. Suas casas representam esse imenso poderio feudal. Feias e fortes. Paredes grossas. Alicerces profundos. Óleo de baleia. Refere tradição nortistas que um senhor de engenho mais ansioso de perpetuidade não se conteve: mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces da casa. 0 suor e às vezes o sangue dos negros foi o óleo, que mais do que o da baleia, ajudou a dar aos alicerces das casas grandes sua consistência quase de fortaleza."225 .
A atividade carece da Metr6pole para obter as terras e capitais destinados ao plantio e à usinagem. 0 vínculo se estreita, e a administração portuguesa – diz Roger Bastide – se dissimulará modestamente à sombra dos senhores de engenho.226
Há condições atuantes a favor de uma unidade. Em primeiro lugar, a economia que se vincula comercialmente à Metr6pole. A luta comum contra o gentio e as comunicações marítimas completam, em seguida, o quadro sócio-econômico.
Em conseqüência, diferencia-se muito pouco da Metr6pole a "civilização praieira" – sustenta Silvio de Vasconcelos – "o que se reconhece por sua arquitetura; o modelo das igrejas e capelas, dos teatros, dos costumes é nitidamente europeu."227 Já com as Minas urbanas, outra a circunstância. No chão duro e seco da região do ouro, em seus vales profundos, o adventício, seja paulista ou reinol, encontra as montanhas de pedra. A paisagem é seca e gera a melancolia. "Populações quase inteiras de aldeias portuguesas se aventuram à travessia do Atlântico, para afluir à corrida do ouro, carreando consigo, não apenas a ânsia temporal de riqueza, que o trabalho mineradora poderia concretizar, mas aquela capacidad de ensueño que transmutaria naturalmente a realidade ainda desconhecida numa verdadeira antevisão edênica." 228
E na estruturação social e psico1ógica da comunidade mineradora incorporam-se ainda judeus perseguidos, cristãos-novos e aventureiros de outros hemisférios.
A exploração aurífera diferencia-se, ademais, da atividade agrária do litoral. Independe da Metr6pole; não exige capital. A dinâmica da mineração decorre de individualismo exacerbado, de ambição sem peias. A sociedade mineradora é anti-rotineira, liberal e progressista. A livre iniciativa rebela-se contra a voragem fiscal, contra a ociosidade. Insubmetem-se os geralistas, "e a situação dos mineiros, desde os albores do século XVIII , vai-se distanciando paulatinamente do ruralismo português transplantado para o litoral brasileiro".
Silvio de Vasconcelos alude as considerações de Hauser acerca da civilização mercantilista que produziria o renascimento europeu, lembrando-nos que se ajustam ao ocorrido nas Minas, em face da civilização agrária litorânea: transformação de uma mentalidade conservadora e aristocrática em outra progressista e democrática.229 De todas estas circunstâncias nasceria, no mundo do ouro, a visão barroca dos geralistas. "0 ouro, bem de produção da economia mineira, converte-se simultaneamente em símbolo da ambição material e em ornamento da vida espiritual, arrancado exaustivamente dos veios da terra e prodigamente transfundido no revestimento dos altares ou recriado nas metáforas dos poetas. Numa sociedade que se esbate contraditória entre o primado humano dos sentidos e o apelo sobrenatural da fé, confirma-se a fórmula definidora do barroco sintetizada por Leo Spitzer: "o fato espiritual aparece sempre encarnado, e a carne apela sempre para o espiritual". Porque, na verdade, se transplantou para as Minas do século XVIII um estilo mais de civilização que estritamente de arte, o qual, favorecido pelas condições geográficas da região, acabou cristalizando-se no seu insulamento e marcando fundamente a trajetória mental do povo das montanhas." 230
Afinal, escasso o ouro, o antigo minerador, desiludido, reuniu os haveres e partiu, com a família e escravos, rumo aos Sertões do Leste. Por dados de velhos aventureiros, os peritos da floresta, tivera conhecimento da existência dos índios, das febres e das condições inóspitas de vida. Contudo, não restava outra alternativa senão a retirada. Vacilara anos a fio até o decidir heróico de sepultar as esperanças da bateia e atirar-se à atividade quase esquecida de lavoura e criação.
0 Leste não conhecera o esplendor do ouro, nem sua cultura. Primitivo, recebia o adventício no seu seio de áspero convívio. A floresta imponente ao redor, a distância dos centros, a comunicação difícil com o litoral, conduziram o pioneiro ao insulamento. 0 aventureiro liga-se à família naquele esforço de conservar-se a salvo. Seus reflexos da criatura antiga, adormecidos por anos e anos de vida urbana, novamente afloram, e prevalecem na aventura do embrenhamento. Então o regime patriarcal acentua-se naquele interior, onde a natureza sobressaia agressiva nas noites de telúricas exibições.
Quando ele tomara o rumo das Áreas Proibidas, levava no espirito as angústias do barroco. Compreendamos a importância do caso na vida diferente do minerador que se converte em sertanista, atirando-se, com gado e família, à atividade da lavoura. Mas as razões do sentimento de culpa, que a riqueza fácil fizera despertar na mente de seus pais, já não subsistiam, porque a decadência viera e a prosperidade findara. 0 mineiro arruinado alcança a redenção na pobreza e na insegurança da nova aventura. Sua fé não mais requer a ostentação; e a primeira medida, no circulo de suas relações, é levantar a capela modesta, simples e comum. A Mata impunha-1he o retorno ao primitivo. Em seu espirito, em seu estilo, a natureza sobrepõe-se ao ornamental. Sua morada, espaçosa e imensa, é, todavia, sóbria. Do passado apenas se inspira nos santuários e nos anjos que o acompanharam na retirada. Do ponto-de-vista das convicções políticas, permanece liberal. Por onde chega, desfralda a bandeira do chimango. As derrotas de 1842, que forçaram novas retiradas da região do centro, exacerbaram o sentimento democrático.
Vindo o café, procedente do litoral fluminense, as condições de atividade econômica altamente lucrosa modificam a psicologia do fugitivo. 0 latifúndio avança, carregando algo da cultura baronal distante. E o café poliria as arestas dos senhores rurais da Mata. Não 1hes modificaria o estilo de vida, nem tampouco a personalidade. A rubiácea consolidava a propriedade, fortalecia 1he a auto-suficiência. O sistema econômico da lavoura se estratifica, solidifica-se, gerando a hierarquia quase feudal.
A estrutura agrária do latifúndio cafeeiro tornava-se, afinal, a antítese da sociedade mineradora. Pouco importavam as melhorias que a prosperidade espalhava com a comunicação mais fácil, pelo trem de ferro, e com próprio verniz que recebia no convívio das comunas em desenvolvimento. A psicologia do mineiro permanece intocável: aquela introspeção e desconfiança, a simplicidade e a teimosia.
Os homens da Mata permaneciam rústicos. Os sertões plasmariam o tipo firme de gente, diverso de seus antepassados das Minas e de seus irmãos do Sul. Curiosa a circunstância no que toca à ultima região, também de lavoura cafeeira, porém inspirada por um sentimento mais próximo ao do Centro. Como explicar a diferença? Responde-nos Afonso Arinos: "0 Sul, com as suas velhas cidades de que a ilustre Campanha da Princesa e São Gonçalo do Sapucai são símbolos expressivos e comoventes, conhecera o século XVIII mineiro na sua significação mais precisa"231 Tinha, pois, a tradição cultural que a Mata desconhecia. Seus líderes são tolerantes e flexíveis. Já os homens da Mata continuaram rústicos. A vida 1hes dera definitivamente características de rigidez. Criaturas s6brias, inflexíveis. Seus lideres políticos são chefes ríspidos e mandões. Autênticos e puros.
Carlos Peixoto seria, conforme a aguda observação de Afonso Arinos, a primeira grande figura da linhagem republicana dos políticos mineiros de tipo autoritário, semiditatorial. Desenvolve-1he a carreira no plano parlamentar, "porém aqueles que o conheceram de perto ou com ele tiveram de lidar, nunca deixaram de caracterizá-do como prepotente". Raul Soares é duro e pertinaz. Um velho guatambu.
Marcam-1he a presença na história poucos anos da República Velha. Bernardes, porém, foi a figura que melhor refletiu a Mata. "Há qualquer coisa de pioneiro em sua reserva fria, na sua obstinada força de vontade, na sua intransigência total, no seu realismo" – diz Afonso Arinos. Sob a aparência de tal rigidez, vive o mineiro da Mata em sua profunda inquietação. No fundo do espírito recalcou o sentimento barroco. Adaptou-se à selva, à paisagem simples de seus casarões, acerou a inquebrantável força de vontade
Solitário, a rudeza da vida torna-o desconfiado e precavido, arredio e discreto. Ao forasteiro examina com cautela de criatura já endurecida pela experiência. Ao compadre, ao amigo, endereça também o trato comedido. Não revela no rosto e nas atitudes, nas horas de dor e emoção, o desespero e o medo. Contém-se e porta-se impassível nos momentos difíceis, porque a sua noção de masculinidade é rude e maciça. A fúria que desencadeia em suas disputas é, pois, álgida e cortante como lâmina de punhal. Investe com ordens frias, palavras escassas e secas, e recebe a noticia da desforra sem qualquer contração de músculo, disfarçando a emoção ou o contentamento em mascara idêntica.
Mas a melancolia atormenta-1he a solidão. È triste sempre, como se a estrutura de sua personalidade estivesse apoiada naquela angústia barroca do século da mineração. Recordando Bernardes, escrevia Gilberto Amado que "aquela coluna de impassibilidade sofria de angústia", e via no indivíduo prepotente o homem amargurado, no chefe que comandava, o espirito inquieto.232
A atormentada pessoa das Gerais sofre no silêncio, mergulha-se na cisma indefinida, na introspeção. Nos Sertões do Leste, o passeio do mineiro descompassado suscita o devaneio doloroso. Noite e mistério, sofrimento e pecado, sexo e vindita. As façanhas de amor são capítulos de tormenta, de penitência. 0 mineiro contido da Mata pena-se na aventura que busca, desafiando a idéia do erro que traz na raiz de suas convicções. Rebela-se e vence a timidez, atira-se à presa, porém a alma dobra-se de remorso e padecimento. Torturante, pois, é a pratica do adultério, que ele prova como expiação. Do fundo do ser emerge o foragido das Minas barrocas a bradar contra a infâmia e a violência.
A contenção do mineiro é algo que estiola pouco e pouco a sua resistência. 0 correr dos anos acumula imperceptível a limalha daquelas frustrações continuadas. Desgasta-se ele no cultivo da solidão. Torna-se conservador, rotineiro e sistemático. Mantém-se teimoso e revoltado.
Pouco se modifica, em verdade, no comportamento social, nas convicções de seu liberalismo político, nos hábitos familiares. Mas, do ponto-de-vista existencial, potencializa a angústia, aprofunda a introspecção. Torna- se mais triste, mais solitário.
Fonte:
http://www.asminasgerais.com.br/Zona%20da%20Mata/Cult%20uai%20s/Literatura/Os%20Sert%C3%B5es%20do%20Leste/Os%20Sert%C3%B5es%20do%20Leste.htm